Teve casamento, hoje, na rua Dezoito. A noiva botou vestido de moiré, grinalda de flor de veludo, véu de renda e buquê natural de copos de leite. Mas na hora de subir ao carro o pé, escondido pela saia longa, errou o estribo; a pobre noiva perdeu o equilíbrio e foi cair de joelhos na poça de lama no chão, pois a rua Dezoito ainda não tem asfalto, é barro puro.
Por causa desse tombo, quase não houve casamento. Calculem, aquele trajo de noiva completo custara bem uns mil cruzeiros na Casa Matias, ou no Mandarim, nem sei mais. Tudo agora enlameado, tudo vermelho. O barro é dum encarnado medonho, parece zarcão; o povo da terra até o emprega para pintar as cozinhas.
A mãe da noiva, quando viu o estrago, botou a mão no peito e deu um ataque. Se não a segurassem logo lá se afundava na lama o outro vestido de seda ― e esse era de crepe pele de anjo, com drapeado e godê na saia.
O pai, muito branco, segurando a porta do automóvel, dizia:
― Andem, acabem com tudo, enlameiem tudo! Pensam que eu sou dono da Caixa Econômica!
Natural que se aborrecesse, coitado. Vira-se obrigado a fazer um empréstimo, que ia passar cinco anos pagando, a fim de comprar o enxoval, os vestidos, a colcha do dia toda de cetim azul, os doces na confeitaria; a cerveja, o automóvel.... Quando a mãe tornou a si, a noiva pôde queixar-se:
― Não vou me casar neste estado.
E uma vizinha engraçada maldou logo:
― Que estado, menina, tu estás em algum estado?
A pobrezinha, tão desesperada se sentia que nem entendeu o veneno. Bradou num soluço: ― Neste estado de lama!
Foi uma dificuldade conseguirem que o chofer esperasse mais um pouco. Dizia ele que tinha outro casamento tratado para as seis horas, e já passava das cinco. E quando argumentaram que até o padre teria de esperar quanto mais ele, o homem ainda teve saída:
― O padre pode esperar, que não trabalha por hora. Mas eu trabalho!
Afinal o foram abrandando, e chegaram a lhe trazer uma garrafa de cerveja que só era para ser bebida por ocasião dos brindes, depois do casamento. Mas aquele motorista era mesmo um sujeito muitíssimo mal-educado porque devolveu o copo logo ao primeiro gole, dizendo que cerveja morna era um veneno para o seu fígado. Como se em casa de pobre fosse obrigado a ter geladeira.
Não tinha geladeira nem tinha ferro elétrico e por isso enquanto algumas das mulheres passavam um pano molhado na saia maculada na noiva, a mãe teve de arregaçar as mangas apertadas do seu vestido cor de lilás e foi botar brasa no ferro. A ideia tinha sido primeiro tornar a despir a noiva para fazer a limpeza direito. Mas para o vestido sair pela cabeça teria que mexer no penteado cheio de bucles, duros e arrumados como uvas no cacho, arranjados demoradamente no cabelo esticado de véspera, num salão da Avenida Passos. E por cima dos bucles ainda estavam presos a grinalda, o véu. Não, era impossível mexer no vestido. Limparam pois como puderam, e na hora de enxugar chegaram a noiva à mesa do engomado, levantaram a saia comprida e assim mesmo foi passado o pano. Claro que não ficou grande coisa. A mancha desmerecera, mas não largara. Mal comparando, como falou novamente a vizinha engraçada, parecia até que a noiva já andava com menino novo ao colo...
A moça, com o olhar distante, deixava que as mulheres trabalhassem nas suas saias. Mas quando todas se afastaram, a fim de contemplarem o efeito, e ela avistou a infame mancha amarela nas suas sedas virginais, rompeu em pranto e declarou que daquele jeito não se casava.
O noivo, que já estava nervoso e irritado com a espera e com o trabalho de abrandar o chofer, apareceu na cozinha justamente naquele momento e, como se apanhasse na frase da prometida a sua deixa de entrada de cena, declarou:
― Afinal, você vai se casar comigo ou com a porcaria desse vestido?
A moça soltou um grito: ― Está vendo, mamãe? Ele também está dizendo que o vestido ficou uma porcaria.
Mas a mãe, já sogra, interveio com o ferro quente na mão:
― O que estou vendo é que ele está sendo um malcriadão, com essa conversa de porcaria. Se começa com palavreado antes do casamento, que não fará depois, meu Deus!
Mas o eco da apóstrofe perdeu-se, porque o motorista, em desespero de causa, vendo que perdia mesmo o casamento das seis horas, danou-se a tocar buzina sem parar. Veio o pai, vieram os tios, os homens todos, rodearam a noiva e a sogra e foi tudo arrastado para o carro.
A madrinha, por detrás da noiva, dizia para a consolar:
― Você põe o buquê na frente, criatura. Assim disfarça.
E o carro deu marcha, atravessou as ruas como uma bala, nem parecia cortejo de casamento. Os convidados que tinham ido na frente, de bonde, já estavam inquietos, calculando mesmo que acontecera alguma coisa. O padre já mandara perguntar duas vezes se o pessoal vinha ou não vinha.
E na hora de caminharem para o altar, o pai, que dava o braço à filha, homem severo e de respeito, rosnou para ela em voz baixa:
― Pare com esse negócio de esconder o corpo com o buquê. Olhe que o povo é capaz de pensar que você está tapando alguma vergonha. Filha minha não casa atrapalhada.
A pobrezinha descaiu o buquê no braço, mordeu o beiço e chegou ao altar chorando. O noivo, que também estava furioso desde a história do malcriadão, ainda amarrou mais a cara quando viu aquelas lágrimas.
Quase ninguém ouviu o “sim” que eles deram ao padre. A fala saiu engolida, sumida, num pelo ódio, na outra, pelo choro.
Mas com “sim” alto ou “sim” baixo, casados ficaram do mesmo jeito; o órgão tocou a marcha nupcial quando os dois atravessaram a nave, de saída. E a noiva, como já não estava de braço com o pai e vinha agora no poder do marido, tapou mesmo a saia manchada com o buquê.
Receberam os abraços e entraram no automóvel sem um sorriso.
E quando saltaram na porta de casa, a recém-casada se deixou cair nos braços da madrinha e declarou só para ela, mas de jeito que todos o ouvissem: ― Para mim este casamento está estragado desde o começo.
*
Agora a rua Dezoito inteira, e eu, e todos, estamos na expectativa: como revelará o estrago? Qual é a tenção da noiva? A lua de mel, entretanto, correndo sem novidade.