Como chove neste Rio. Chuva miúda, chuva graúda, chuva inimiga, fria e molesta, que traz doença, catarro de peito, constipação da cabeça, tísica. Na cidade o asfalto parece um rio preto e aqui o barro vermelho vira uma lama pegajosa que mal comparando lembra até lama de sangue. A ilha, embebida de chuva, dá a impressão de que vai se derreter dentro do mar como um torrão de açúcar.
E a gente pede a Deus misericórdia, implorando que a chuva pare. Quem havia de dizer, cearense sem querer mais chuva. São coisas que acontecem a quem sai da sua terra e vai penar por terra alheia. Renegar o que adorou, e até chuva achar ruim ― chuva, bênção do céu. Ai, se no Ceará não fosse o povo todo tão bom católico, devoto de S. Francisco de Canindé e temente do bispo, se no Ceará tivesse lugar para pagão, na certa, esses pagãos se dedicariam não a adorar o sol, nem a lua, nem o mar, nem as florestas que lá nunca houve; iriam adorar a chuva nossa madrinha, criadeira e benfeitora, salvação dos homens, dos bichos e das plantas. E assim mesmo, de certa maneira disfarçada, bem que temos o nosso culto da chuva. As procissões pedindo chuva, os grandes comícios religiosos no dia de S. José, que é o último dia do calendário no qual ainda se permite uma esperança de inverno. Se não vêm as águas até 19 de março, então adeus, até para o ano. E as casas de campo com o seu pluviômetro em lugar da imagem de santo, ao oitão. E os homens acocorados no alpendre, nas fazendas, noites inteiras, como se rezassem ― e não rezam, mesmo? ― esperando o sinal do céu, o relâmpago.
Por causa desta chuva sem fim daqui (e o que mais me irrita nela é o desperdício: ninguém a quer, todos a maldizem) mas por causa dessa chuva, sofri esta noite um susto horrível.
O caso é que sempre tive um medo desesperado de submarinos. Só a ideia de entrar num submarino me arrepia; e, engraçado, na infância, um dos meus heróis prediletos foi o Capitão Nemo, do Nautilus. Nas águas do açude do Junco, escondido debaixo de uma lapa de pedra, guardava eu um tronco de mulungu, com a vaga forma dum submarino, ao qual batizara de Nautilus II. E durante o banho de açude, enquanto as outras crianças faziam molecada na água rasa, dando cangapé e apanhando galinha gorda, saía eu disfarçada, ia desancorar o Nautilus do seu esconderijo na “ilha misteriosa” e saía para o fundo, empurrando o meu submarino entre duas águas, eu servindo-lhe de motor e ele me servindo de boia salva-vidas. Tivemos assim estranhas aventuras, inclusive apanhamos na represa um carregamento de intãs que são conchas negras por fora e madrepérola cintilante por dentro e viraram naquela hora o tesouro afundado do galeão espanhol. Combatemos piratas e ingleses, matamos gente que era um horror. E nenhum dos meninos entendia o meu triunfo, a minha fadiga, quando chegava das expedições, arquejando misteriosa, empurrando diante de mim o Nautilus II, que navegava à superfície com a proa coroada de flores de água-pé.
Pois a despeito disso ou por causa disso (que pena, mas não entendo nada acerca do desenvolvimento dos complexos infantis) o fato é que, crescendo, criei um grande terror mórbido por submarinos. A ideia de afundar debaixo de água dentro daquele cilindro de ferro, o cheiro de óleo queimado, o abafamento que deve reinar lá dentro ― só de pensar tenho arrepios. Lembram-se os amigos daquele naufrágio do Squalus? Dias e dias um punhado de homens ficou a morrer lentamente, presos no submarino afundado, acompanhados pelo interesse ansioso do mundo inteiro. Squalus quase me matou de aflição. Logo depois veio a guerra ― e bem creio que o meu horror fundamental pelas guerras modernas decorre principalmente da ideia dos homens que morrem engavetados no fundo do mar; cair do céu num avião em chamas, morrer afogado mas solto na água, morrer de bombardeio, de tiro, de lança-chamas, nada disso é comparável com a morte sem fôlego no ventre da máquina medonha. Até de nazista dá pena.
Pois esta noite, no meio da chuva ininterrupta, tive o pesadelo de que estava presa num submarino, que se afundava, desarvorado. E o submarino havia de ser o Nautilus, pois pela sua característica vidraça de cristal grosso avistava-se a água verde do mar e, mais ao longe, o olho fosforescente de um bicho negro das profundezas. Daqueles bichos que ninguém vira antes e que o professor Aronax classificava pedantemente para o capitão Nemo. ― Eu suava frio, me debatia e gritava em vão, que a voz não saía da boca. Tanto foi o pavor que acordei, sentei-me na cama ― e ó horror três vezes maior. Não era sonho, ERA VERDADE! Lá estava a água a escorrer do cristal, o marulho do mar, o olho luminoso do monstro submarino. Dizer que morri de medo é pouco, porque não era só o medo, era um amolecimento geral do corpo e da alma. Só aos poucos, devagarinho, me dissolvendo num suor frio, é que fui identificando as coisas: a vigia do submarino era a janela do quarto, a água verde do mar era a chuva que pelo vidro escorria, e o olho pavoroso do bicho era o globo de luz da rua. Luz de mau agouro, por sinal. Nas noites limpas é em torno dela que se reúnem todos os garotos da redondeza, num ensaio infernal de cuícas, apitos, latas, caixas e pandeiros, do seu bloco de sujos. E em dia de chuva vira assombração, se transformando naquele olho ciclópico de besta marinha.