Alguém me escreve pedindo que lhe diga qualquer coisa sobre a arte de criar um filho. Que neste mundo confuso de hoje uma pobre mãe se vê tonta; dantes era só ensinar o ABC, a doutrina, o temor de Deus e dos pais e dormir de coração descansado, porque a batalha estava ganha. Mas hoje, o menino não aceita singelamente a doutrina que lhe ensinar, como não aceita temor nenhum, do céu nem da terra. E há tantas teorias, tantas receitas de vencer na vida...

Sim, minha senhora, sobre a arte de criar filhos se tem escrito toneladas de tratados. A bibliografia a esse respeito é talvez uma das maiores do mundo. Cada religião, cada seita, cada filosofia, cada ramo didático, tem as suas teorias próprias, e todas se imaginam excelentes. De forma que o melhor recurso de ficar em paz com a sua consciência é verificar qual a teoria religiosa, social ou política à qual a senhora se sente mais ligada e, de acordo com os padrões dessa doutrina, educar o seu filho. O mundo anda cheio de pedagogos, não lhe será difícil a escolha.

Eu é que não lhe posso indicar nada. Não tenho filhos, não passei nem passarei, portanto, pela experiência de criá-los. E se eu tivesse um filho suponho que o haveria de amar com uma cegueira de amor tão grande que provavelmente esse amor excessivo me haveria de incapacitar para qualquer esforço educativo. Deus sabe o que faz, e talvez por isso mesmo negou-me o que dá às outras. Contudo, se eu conseguisse vencer essa fraqueza amorosa que receio, nem assim acredito que o meu sistema de educação lhe fosse parecer desejável. Porque eu não ensinaria a meu filho nenhuma das artes de vencer na vida, não incutiria nele nenhum desejo de triunfo ou de grandeza. Pelo contrário, a primeira coisa que eu haveria de ensinar a meu filho seria a humildade. A consciência profunda da nossa pequenez, da nossa miséria, da nossa transitoriedade. A sujeição à carne, ao trabalho, à morte. Mostrar-lhe-ia o grande mundo tão povoado e ele tão pequeno e tão só dentro desse mundo. Cada um tão só — ele e eu e nós todos. Sim porque depois da humildade eu ensinaria o meu filho a reconhecer e a aceitar a solidão. Como são ilusórias as multidões, como é frustrado o nosso instinto gregário, como qualquer comunicação real é impossível, como não nos livra da solidão sequer o amor mais profundo e mais completo. Começando por nós dois — embora eu o carregasse ao colo, não via ele como cada um continuava fechado na sua solidão, a alma tão protegida e defesa contra os demais como o corpo na sua pele impermeável? E assim como o corpo não se comunica — e da sua impermeabilidade depende a sua integridade — também para a alma a comunicação representa a impossibilidade e a morte.

Depois eu ensinaria a meu filho, naturalmente, o amor dos seus semelhantes; provavelmente talvez nem precisasse ensinar — deixá-lo-ia seguir o seu instinto natural. Mas encaminharia esse amor de preferência aos pequenos, aos numerosos, aos sem nome e sem história. Quando o quisesse arrebatar de admiração ante um heroísmo e uma grandeza, contar-lhe-ia a vida dos povos da terra, chineses e judeus, camponeses da Europa, colonos da América, negros escravos, operários de fábrica, soldados, vaqueiros, desempregados. Como se luta com os flagelos — enchentes, secas, pestes, guerras, senhores. Como se passa fome, como se sofre e como se morre, como os homens se reproduzem feito árvores, feito bichos sem nome, e quanto obscuro heroísmo há nessa obstinação de perpetuar-se e sobreviver a despeito de tudo. Não lhe diria nomes de reis ou de soldados: de modo geral evitaria dizer-lhe nomes. Jamais lhe contaria os feitos de Alexandre ou de César — meu Deus, tremo só de pensar no perigo de ver meu filho contaminado pelo abjeto culto ao herói, querendo ele também ser um malfeitor tal qual eles, matar homens, escravizá-los, possuí-los. Não sei se expliquei direito a minha ideia: é que ao mesmo tempo que ensinasse a meu filho o indiscriminado amor pela humanidade, eu lhe ensinaria também o temor do indivíduo. Basta um homem acreditar em si, imaginar-se diferente ou único, para representar uma ameaça, e eu ensinaria a meu filho a temer essa ameaça. Porque a diferença que em si constata esse homem único fá-lo atribuir a si próprio um valor acima dos demais homens e cobrar dos demais homens o preço desse valor. Tais indivíduos é que representam o perigo máximo para o mundo de criaturas debilitadas pela pobreza e pelo número que o meu filho aprendera a amar, são o mal e são a Besta, quer se chamem Carlos V, Napoleão, Frederico o Grande, ou Hitler. Como primeira defesa contra a sedução desses indivíduos ensinaria eu o meu filho a temer a autoridade, toda vez que essa autoridade tivesse um nome, emanasse de um homem, em vez de representar a força coletiva da defesa comum. Temer a autoridade não só contra si, mas também a seu favor e mormente temer a desgraça de reter nas mãos qualquer partícula dessa autoridade necessariamente espúria, porque sempre representa uma violência. E por falar em violência, aí, acima de tudo, fugir da violência. Que nenhum prêmio paga o preço da violência, nenhum fim justifica o seu uso.

Ensiná-lo-ia também a aceitar e a praticar o trabalho; não propriamente porque acredite na nobreza ingênita do trabalho — muitas vezes ele é vil e humilha. Mas até hoje foi o trabalho o único processo descoberto pelos homens para lhes dar independência e lhes garantir a segurança.

Creio que não mandaria o meu filho seguir de olhos fechados o curriculum obrigatório dos estudos, tal como é feito nas escolas. Deixaria que a sua curiosidade o guiasse; se ele tivesse sede da verdade e da ciência, procuraria satisfazer o seu desejo: o amor do estudo, como qualquer outro amor, tem que ser espontâneo para não ser um castigo. E se ele não tivesse tal sede de estudo, por que fazer do meu filho um cativo de ideias alheias, por amor de o padronizar ao modelo dos homens da sua classe? E pensando nisso, qual seria a classe social do meu filho? De mim, não lhe imporia nenhuma. Antes lhe ensinaria o desamor a qualquer hierarquia e prestígio social. O ridículo dessas camadas sucessivas de homens catalogados pelo preço, como mercadorias numa loja; as misérias que por amor delas se toleram, a negação de humanidade e fraternidade que elas representam. Procuraria fazê-lo sentir como um desejo impuro qualquer ambição de triunfo ou grandeza. “Estude meu filho, se quiser ser alguém”. Considero essa frase quase criminosa. O único estímulo que eu lhe ousaria dar nesse sentido seria apenas este: “Estude, meu filho, se se atreve a enfrentar o conhecimento”.

E, acima de tudo, não lhe incutiria nenhuma noção de bem ou de mal, porque todo o meu esforço seria no sentido de tornar para o meu filho o bem uma necessidade em si, indiscutível, qualquer coisa obrigatória e sem alternativa.

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Vê assim, minha senhora, que o meu programa não serve. Porque o filho, criado de acordo com tais ideias, haveria de viver sem nome e morrer sem ruído, e a senhora não deseja para o seu rapaz destino tão humilde, quer fazer dele um cidadão-modelo e uma glória para o seu país. É o que em geral desejam todas as mães, e afinal talvez tenham razão elas e não eu, já que elas são a maioria esmagadora e eu sou uma miserável e solitária unidade.

rachel-de-queiroz
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