― I ―
Eneida e o seu “cão da madrugada”
Esta primeira metade é para falar de alegria. Deixa a tristeza para o fim. E a alegria é o novo livro de Eneida, que tão liricamente se chama Cão da madrugada e já está na rua, espalhando poesia, mistério, sedução longínqua de vozes noturnas.
Acontece que o gênero “crônica” anda ultimamente meio barateado na imprensa nacional. Cada jornal e revista sustenta a sua equipe de pelo menos meia dúzia de cronistas, ― pois descobriu-se que crônica é coisa por demais fácil de fazer. E assim, para sentir nas entranhas da alma ou do corpo a mais pequena alteração, a melhor terapêutica é abrir coluna na imprensa e desabafar; explicar que se está com sono, com gripe, com tédio, ou com simples falta de assunto; e em estilo penumbrista, a modo de bolero em prosa sincopada (a chamada “prosa menor”), dividir com o leitor esses peculiares estados ― digamos estados d’alma.
Pois vem a nossa magnífica Eneida e rompe essa numerosa concorrência com sobranceria e elegância ― se é que ela toma conhecimento da concorrência. E nos dá um livro cheio de personalidade, de encanto, de coisas inteligentes e honestas. Poucas páginas nesse gênero literário tenho lido que me comovessem tanto quanto aquelas palavras de saudade ditas à amiga morta, à linda e doce Bluma, de nome de flor.
Mas não fica o livro apenas nas páginas de emoção. Na sua maior parte o que ele nos revela é uma personalidade de mulher que tem vivido, sofrido, entendido, ajudado. Mulher de coração humilde, mas alegre, que deve com reconhecimento, paga com alegria, luta com lealdade e sofre o seu quinhão com dignidade tranquila.
Amiga Eneida, nestes anos todos em que nos temos conhecido e estimado, posso testemunhar que, à medida que o tempo passa, você sempre vai crescendo, avultando em ponto maior, à força de talento, coragem, desejo de servir.
O belo livro que nos dá agora vale, portanto, como um triunfo pessoal para os seus amigos ― você que fez da amizade uma espécie de devoção intima; no mesmo espírito o recebemos, além dos aplausos que lhe damos, como pura e excelente obra literária, que ele é.
―II―
Partida de Oswald
E agora a tristeza: partiu Oswald, morreu Oswald de Andrade. Estávamos acabando a leitura do seu primeiro volume de memórias, tão estranho, tão marcado, tão oswaldiano, quando no jornal nos aparece o seu retrato, em coluna aberta. É o Oswald triunfante dos bons dias, de boina, sorridente, olho vivo, aquela mistura de exuberância juvenil com a fadiga dos anos vividos, que era talvez o seu encanto maior. E por debaixo do retrato, não a legenda que esperávamos, contando o êxito do livro, mas a seca notícia de que Oswald morrera, naquele mesmo dia, em S. Paulo, de um ataque do coração. Aquele seu cansado coração que já há anos o atormentava, lhe tomava o fôlego e lhe empanava a alegria.
É muito cedo (ainda não conseguimos sequer dissociar a presença tão próxima e a ausência tão súbita de Oswald), para comentar o seu importante papel na literatura brasileira, na vida brasileira. Há hora para tudo, e no futuro vai haver muito tempo para isso. O momento, agora, é apenas de chorar. Chorar o artista, o amigo, aquele cujas asperezas eram apenas exteriores, cuja capacidade de querer bem ia muito além do que parecia. Morreu Oswald, que batia à nossa porta com um automóvel carregado de crianças, trazendo um pouco da beleza e do carinho dos meninos de olhos claros para esta casa sem crianças. Oswald que telefonava ruidoso e exuberante, e contava as façanhas cinematográficas de Rudá, na Itália, e a nova peça de Nonê, ou o novo quadro, e repetia a última boutade de um dos seus famosos “telefonemas”, que ainda não fora publicado. Oswald que, passada a fronteira das suas arruaças de carbonário, tinha pelos amigos uma ternura e um entusiasmo às vezes tão excessivo que encabulava.
Este pedaço de crônica ia ser uma espécie de necrológio, uma explicação ao público acerca da morte de um homem que marcou, com garra de leão, o seu lugar na história literária do Brasil. Mas ao pensamento de Antonieta chorando, Antonieta viúva, Antonieta que o amava e ele adorava, fica para depois o necrológio. Por ora é a vez da saudade e da amizade, o momento das palavras que digam a comoção de nós todos ante a mágoa de Antonieta, que ficou sozinha, ante a dor dos filhos, grandes e pequenos: ― Nonê, Rudá, Marília, Marcos.