Talvez fosse maliciosa a pergunta daquele que me escreveu pedindo-me que defina o que é democracia. Em todo o caso, como falar no que é bom não faz mal, vamos nos fazer de inocente e aceitar a pergunta como genuína.
Claro que o perguntador, dado o caso de ser sincero, não pedia uma resposta ortodoxa, assim uma definição de compêndio ou de dicionário. Mas, por curiosidade, vamos ver o que diz a respeito o nosso velho Antônio de Morais e Silva; cá está:
“Democracia — forma de governo na qual o sumo império, ou os direitos majestáticos residem atualmente no povo e são por ele exercidos”.
A definição tradicional é que democracia é o governo do povo pelo povo. E como o povo não pode governar diretamente, entidade coletiva que o é, tem que delegar poderes a alguém, por intermédio de uma operação política que se chama eleição.
Para começo de conversa, vamos então fixar um ponto: não existe democracia sem eleição. Pois que a eleição é a única maneira pela qual o povo pode delegar poderes aos seus mandatários. Disso se conclui que, quanto mais perfeitas, universais e honestas sejam as eleições, mais legítimo será o mandato dos que o povo escolhe para o governarem em seu nome.
Agora outro ponto também muito importante: a qualidade desse mandatário não faz mais ou menos democrático o seu governo. O importante é o mandato, não a origem social daquele que o exerce.
Vemos frequentemente, nas fases de propaganda pré-eleitoral, este ou aquele candidato alardear sua condição de “filho do povo” — que é operário, camponês, que é pobre de pai e mãe, etc. Isso não tem importância nenhuma nem representa a menor garantia de que o homem vá exercer democraticamente o seu mandato, se eleito. Poderá ele vir a ser um excelente legislador ou membro do executivo, ou pode se revelar um puro demagogo, ambicioso, ignorante e, portanto, pouco apto para exercer funções melindrosas e que exigem preparo especializado. E no polo oposto um rei, um aristocrata, descendente de uma longa série de príncipes, pode dar um excelente governante democrático, consciente da limitação dos seus poderes, respeitoso da letra da lei. Um exemplo? Os atuais reis escandinavos, o finado Jorge VI da Inglaterra.
Ousemos dizer até mais, embora sob o risco de cair sob as iras dos ditos “populistas”: é preciso mesmo ter bastante cuidado com esses candidatos a cargos públicos que se declaram “legítimos filhos do povo”. Há casos, realmente, de um legítimo filho do povo, um self-made man nascido entre gente pobre e entre gente pobre criado, e que arrastado pela sua vocação política chega a ser, graças ao esforço, à visão, à inteligência, à coragem, à honestidade das mãos (para não pegar nos dinheiros públicos) e à honestidade intelectual (para não recorrer ao jogo baixo dos demagogos) um estadista, um dirigente excepcional. Temos, aqui no Brasil, um belo exemplo deste caso no presidente Café Filho, homem de origem modesta, que não chegou sequer a cursar universidade nesta terra de bacharéis, e que, no entanto, é realmente um dos grandes homens públicos a serviço do país, tendo dado provas da sua classe e da sua raça de estadista em algumas das horas mais dramáticas que a nação brasileira já atravessou. Há outros casos, e muitos, aliás, em que o legítimo filho do povo não passa de um demagogo iletrado, que supre a ignorância com a audácia e a falta de escrúpulos. Desses temos tido grande variedade, sendo que o viveiro deles são os sindicatos mantidos à sombra do Ministério do Trabalho, e o povo, que eles pretendem representar, já lhes deu apelido pejorativo: são os famosos “pelegos”. Outro conceito que a demagogia tem espalhado e que não corresponde à verdade é que só é povo quem emana das classes mais desfavorecidas da população. Povo são esses, e sim, e são todos os outros, e tanto pode alegar que é povo o pequeno burguês, como o operário, o lavrador, como o coronel, como o fazendeiro, como o comerciante. Só não se pode considerar povo, dentro da população do país, aqueles que por sua atividade antissocial se excluíram da comunhão democrática — e esse excomungado tanto será o pequeno ladrão descuidista, como o tubarão dos lucros extraordinários, os contrabandistas de uísque e automóveis, os traficantes de influência; esses não são povo, não são brasileiros, não são nada, são ladrões apenas.
Outro tópico que é preciso esclarecer é que, atualmente, a forma de governo não implica na sua qualidade democrática. A palavra república pode esconder uma ditadura e a monarquia representar uma adiantada vida democrática. Já citamos as monarquias da Suécia, Noruega, Dinamarca, como exemplo de democracias. E temos o caso das chamadas “repúblicas” latino-americanas (Santo Domingo com o seu Trujillo, por exemplo), que são formalmente repúblicas, mas, na realidade, sofrem de uma forma de governo das mais primitivas, o soba, o régulo, o tirano fantasiado de “presidente”. Poderia ele se intitular rei, imperador, Führer, Guia, e sua condição não se alteraria substancialmente em nada.
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Será esta democracia, que tentamos praticar dentro dos padrões liberais-burgueses, a forma ideal de governo? Isso agora já é outra história. Para mim, que sou socialista, não o é. O ideal de governo, segundo penso, é a sociedade sem classes, com distribuição igual de riquezas e oportunidades. Mas, como já disse, isso é outra história. Mesmo porque o mundo, depois das duas guerras mundiais, já não obedece mais àquela rígida divisão de classes do Século XIX; as terríveis crises econômicas, o terror de uma revolução social que atormenta a burguesia detentora do poder, a influência da revolução russa, a insurreição generalizada dos povos coloniais, a chamada politização das massas, tudo isso torna muito mais fluidas as linhas divisórias entre uma classe e outra, e vai tirando à burguesia a hegemonia do poder político que ela arrebatara à aristocracia no fim do século XVIII.
Mas não vamos nos enfronhar em tais funduras, que nem cabem nos limites desta crônica. Limitemo-nos à palavra democracia e às lições práticas que ela nos dá. Fica, pois, dito que democracia, quer dizer, governo do povo por si mesmo, mediante eleições livres e honestas, é o ideal de todo povo que merece esse nome. E, portanto, para termos qualquer coisa parecida com democracia, vamos cuidar das nossas eleições. A começar pela honestidade e limpeza do alistamento eleitoral, indo até à escolha conscienciosa dos candidatos. O ideal seria o povo conhecer quais são os seus melhores filhos e os indicar para os postos de comando. Mas isso é muito difícil: os bons se encolhem, os maus se agitam e os escondem. E o povo, na hora de escolher seus mandatários, é vítima da velha mágica tão tola e tão manjada, que consiste em aceitar a carta que o ilusionista nos força; carta marcada, viciada, um miserável dois de paus, sem conteúdo nem substância, que o mágico habilidoso nos impingiu, sem nos deixar ver e pedir o ás de trunfos, que estava escondido por detrás da carta ruim.