No norte nós não dizemos dente do siso, mas “dente queiro”. E noto para os devidos fins que a expressão não consta do perfeito dicionário do nosso quase infalível Aurélio Buarque de Holanda. Mas, dentes, do siso ou dentes queiros, naturalmente tu já os tens todos, leitor, que direitinho te nasceram quando chegou a hora oportuna. Tens os dentes e tens os atributos que se acredita eles conferem: o propósito, o entendimento, a gravidade de adulto já devidamente acabado em todas as suas perfeições.

Pois eu quero te confessar um segredo: não tenho os meus. Não tenho nenhum dos quatro dentes do siso. É assunto em que não gosto de falar, porque sempre dá margem a pilhérias sem graça, até trocadilhos; mas a ti que és meu leitor e confidente de todas as mágoas, nada desejo esconder. Não os tenho. Porque razão, só Deus saberá. Afinal recebi corretamente e na devida proporção os demais ossos do corpo, por miúdos ou graúdos que sejam, leves ou pesados. Não me falta falange ou vértebra e até mesmo outros dentes são sólidos e de bom tamanho; então porque faltariam justamente os do siso, que no ponto de vista moral e ético são os mais importantes? Há de ser castigo, olho mau de alguém.

Diz um entendido que isso me acontece porque o dente queiro é um órgão que tende a desaparecer e que dentro de algum tempo (não sei se serão meses ou serão séculos) viveremos até à velhice extrema sem que jamais um dente de siso nos aponte à boca. (Alguns, mais ousados, dizem que chegaremos mesmo à perfeição de não ter dente nenhum). Considero essa explicação a mais desagradável de todas, porque fico me sentindo assim uma espécie de macaco intermediário no trabalho da evolução da espécie e receio que quando os paleontologistas me desenterrarem o fóssil, daqui há alguns milhões de anos, dançarão de alegria e provavelmente me hão de pôr a triste caveira petrificada num museu, porque nela terão descoberto o elo intermediário entre o homem de 32 dentes e o homem de apenas 28. Digo intermediário e para que me entendas, leitor, lá vai o resto do segredo, está-me nascendo agora um dente queiro. À toa, fora do tempo, e o pior de tudo é que não ata nem desata, nem nasce nem recolhe, não fica no limbo nem respira no mundo. Saiu lá das profundezas orgânicas de onde vêm os dentes, revelou-se produzindo dores de ouvido, de cabeça e nevralgias, materializou-se no raio X, gastando bom ectoplasma com tão mau defunto – e por fim encaixou-se bem no meio das raízes de um molar já antigo no lugar, dono daquela posição desde a nossa adolescência. O pretexto é que não nasce porque não encontra espaço na arcada. Mas isso é conversa, com um pouco de boa vontade espaço haveria. Onde cabem quatorze caberiam quinze. Pois o que eu enxergo muito bem no meio de toda essa anomalia é a mão do finado Charles Darwin, fazendo suas mágicas de evolucionismo dentro do meu pobre esqueleto. Querem-me para museu, não há dúvida, e por isso mesmo assim me fabricam o singular crânio, com os 28 dentes regulares no seu lugar e lá por cima, encravado entre o osso e o derradeiro molar, o órgão abandonado, o dente involuído, prova concreta de que antes dos homens do futuro houve em verdade os homens do passado, do mesmo modo que a existência do cóccix é a prova de que antes dos homens sem cauda houve também homens caudados.

Mas hei de burlar esse plano. Fenômeno comigo, não. Quero sepultura cristã, decência e paz na eternidade. Agiremos contra o anômalo. Extirpá-lo-emos a lanceta, a boticão, a ferro frio. Abrindo carne, rasgando gengiva, procurando de queixo acima até encontrá-lo. Nem que seja preciso me embriagarem com cloretil ou me adormecerem com clorofórmio, ou qualquer outra droga hoje em dia usada para se dormir.

Tinha eu jurado que este corpo que a terra há de comer médico nenhum cortaria com o seu bisturi. Mas a escolha agora é entre o médico e o preparador do museu. 

E aliás, pensando bem, não quebro a jura. Porque felizmente não vou cair em unha de médico; dentes, nascidos ou nonatos, não pertencem, de modo nenhum, ao território dos mortícolas, ficam mesmo nas atribuições de um honesto cirurgião-dentista.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
x
- +