A noção comum que se tem a respeito do escritor é que pessoas excepcionais, nascidas com o dom de escrever bem ou belo, são periodicamente visitadas por uma espécie de iluminação das musas, ou do Espírito Santo, ou de um outro espírito propriamente dito − fenômeno a que se dá o nome de "inspiração". O escritor fica sendo assim uma espécie de agente ou médium, que apenas capta as inspirações sobre ele descidas, manipulando-as no papel graças àquele dom de nascimento que é sua marca.
Pode ser que existam esses privilegiados, mas os que conheço são diferentes. Não há nada de súbito, nem de claro, nem de fácil. O processo todo é penoso e dolorido, e, se se pode comparar a alguma coisa, digamos que se parece muito com um processo filológico − que se assemelha terrivelmente a uma gestação cujo parto se arrastasse por meses e até anos.
Começa você sentindo vagamente que tem umas coisas para dizer ou uma história para contar. Ou às vezes ambas. Fica aquilo lá dentro, meio incômodo, meio inchado (na minha terra se diria como "uma dor incausada"), quando um belo dia a coisa dá para se mexer. Surgem frases já inteiras, surgem indefinições que, se você for ladino bastante, anota para depois aproveitar; mas se for o contumaz preguiçoso, confia-os à memória e depois os esquece.
Dentro da enxurrada de frases e de ideias aparecem, então, as pessoas. Surgem como desencarnados numa sessão espírita − timidamente, imprecisamente. São uma cabeça, uma silhueta, uma voz. Neste ponto, junto com as frases, pensamentos e criaturas, (e mormente com o cenário, embora ainda não se haja falado nele), nessa altura, a história já está se arrumando. Você sabe mais ou menos o que contar. Os autores meticulosos, nessa fase dos acontecimentos, já delinearam o que eles costumam chamar o "plano de obras", ou seja, um esqueleto do enredo. Se é um romance, o esquema será mais amplo, os claros serão facilmente preenchíveis. A história corre a bem dizer por si. Mas, se se trata de teatro, o esquema bem linear é imperioso: aquilo que tem que ser como um pingue-pongue, ter um crescente constante, uma economia, uma nitidez...
E então chega um dos piores momentos nessa fase embrionária da obra por escrever. O autor enguiça. Falta-lhe imaginação para desenrolar o resto da história, falta a centelha necessária para criar a situação única, indispensável, climática, que será como a tônica do trabalho. E a gente fica numa irritabilidade característica, e numa pena enorme de Deus Nosso Senhor, que é obrigado a dirigir as histórias de não apenas um punhado de personagens, mas dos bilhões de viventes que andam espalhados pelo mundo; e se concebe um respeito trêmulo pela divina capacidade de invenção, que tão pouco se repete e tão invariavelmente cria.
Talvez com autores de imaginação rica o fenômeno se passe diferente. É provável que eles, ao contrário de nós, os terra a terra, primeiro imaginem um enredo e depois, segundo as necessidades desse enredo, vão criando os personagens e os situando no tempo e no espaço. Aí a sensação criadora deve serde plenitude e gratificação. Mas, esses são os estrelos. A arraia miúda escrevente − ai de nós, é mesmo assim como eu disse: pena, padece e só então escreve.