O governo pretende tornar facultativo o estudo da língua francesa nas escolas secundárias, é o que se anuncia. Aí, todo mundo sabe o que significa aqui no Brasil a palavra “facultativo”. Quando o ponto é facultativo, por exemplo, quer dizer que é feriado: funcionário nenhum põe o pé na repartição. Pois que aqui, o que não é obrigado podia ser proibido, já que ninguém faz nada senão à força. Não vota, não se apresenta a serviço militar, não paga imposto. Governo quer alguma coisa, tem que obrigar.
E assim, facultar o francês será o mesmo que proibir. E a nós, da velha geração, essa novidade governamental parece-nos uma das resoluções mais graves jamais tomadas em relação ao futuro do Brasil. É como uma reviravolta de 180 graus em relação às nossas bases de cultura, será um renegar total de todas as fontes onde abeberou o espírito nacional, desde os tempos coloniais.
Dirão que não se troca o francês pelo inglês — apenas se permite a escolha. Mas, diante da tremenda máquina de publicidade americana, será que a impressionável mocidade, criada à luz do cinema americano, ao som da música americana, ao passo da dança americana, à risca das revistas de quadrinhos americanas, será que algum jovem jamais optará pelo “obsoleto” francês?
Não digo por saudosismo — mas então não estão vendo que nós não podemos renegar o francês? Afinal o francês não é uma língua morta como o latim. É uma das línguas mais vivas do mundo, a segunda mais falada das línguas europeias. É uma língua irmã, que nós, de fala portuguesa, aprendemos com facilidade e ternura. Não é que eu seja contra o inglês, também. O inglês é útil, é indispensável, mas não é, para nós, a língua natural da cultura. Se é bobagem dizer que nós racialmente somos latinos, não podemos negar que culturalmente o somos. E o francês, é a primogênita da latinidade, no francês vamos colher, de primeira mão, o que de melhor e mais importante se fez em arte, em poesia, em ciência, na Europa Meridional, na Europa Latina. Já basta o que a influência do poderio ianque tem feito para americanizar os jovens, — não carecia que o governo metesse a mão. Ainda outro dia encontrei uma moça minha amiga a ler Salambô em tradução americana. Não parece uma monstruosidade, uma brasileira lendo Flaubert em inglês — porque não sabe francês? E o repórter que numa roda estava arrasando Baudelaire — quando se apurou que o desgraçadinho só conhecia Baudelaire de umas poesias traduzidas numa antologia americana! Ou a professora que me contou que ouviu uma aluna dizer que chèri é o nome daquela atriz de Hollywood “Sherre”...
Juro que não sou parcial neste caso. Pois adoro a língua inglesa, a literatura inglesa e, se não adoro, pelo menos tenho boas relações com a literatura americana. Mas nesta altura do mundo, entregar a formação intelectual, artística e literária da mocidade apenas ao hot-jazz e à Coca-Cola, renegar assim o francês, me parece uma ingratidão e um crime. O Brasil futuro, desses jovens que ignorarão o francês, vai ser um Brasil diferente. E o pior é que os moços irão atrás da cultura inglesa, para eles tão obsoleta quanto a francesa. O que eles querem é mascar qualquer coisa de americano: — 50% daquela algaravia elementar inventada para uso dos nativos do Pacífico, chamada “inglês básico”, e os outros 50 % do slang que o cinema vulgarizou. Querem saber só o bastante para cantar as cantigas daquele pequeno exibicionista Elvis “the Pelvis”.
Senhores — não falo pela França, apesar do amor que tenho pela França. Mas já pensaram nos puros, nos altos prazeres de que se vão privar os nossos moços, por culpa vossa? Nunca lerem Molière, nunca lerem Voltaire no original? Nunca lerem Balzac nem Sthendal? Não lerem Villon — meu Deus, nascerem, morrerem, botarem anel de doutor, e não lerem jamais uma balada de Villon? Não lerem Claudel!
E por falar em Claudel, ocorre-me que os líderes do nosso pensamento católico deveriam tomar parte contra essa liquidação do francês e consequente americanização nossa. Pois que, com o crepúsculo do latim, o francês ficou sendo a grande língua do catolicismo. E o americano (para não falar dos ingleses, que são protestantes puros), o americano, em que pese a grande proporção de católicos existentes nos Estados Unidos, é um povo protestante. Livro de lá que nos chegue, tem quase sempre o selo do “livre exame”. Veja esta biografia de S. Pedro, tão bonita, anda por todas as mãos — mas é feita do ponto de vista dum luterano. Ou este filme sobre o Cristo — cuidado não é o Cristo de Roma, é o de Genebra, o dos calvinistas. Ou esta peça sobre Maria Stuart e Elizabeth — é anglicana, nada mais.
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Dirão que este protesto é luta contra a maré. Talvez. Mas para que foi que se inventaram diques? Ao governo cabe erguê-los, quando a maré oferece perigo. E não é só pelo lado sentimental que protestamos. É por medo do mal que esta insensata medida pode causar. Nós, afinal, somos muito diferentes dos americanos do norte. Somos pobres, eles são ricos, mas temos muitas coisas boas que eles não têm e, entre essas, muita coisa boa que a França nos ensinou e eles não aprenderam. Os americanos são os nossos aliados naturais, nossos irmãos do continente, tudo isso. Mas não devem ser os nossos mestres de cultura. Mesmo porque, por mais ricos e adiantados tecnicamente, eles ainda não têm cultura própria, são um povo na fase da aluvião. E, aluvião por aluvião, basta o nosso. Que não ficará melhor se o revolvermos, e atirarmos fora as camadas já sedimentadas, já incorporadas, que já nos davam a impressão de terra nossa, onde se podia plantar e colher.