Talvez seja a feira livre um dos mais seguros sintomas de que o homem metropolitano se considera de fato um exilado; toda vez que pode, trata de fugir à civilização, ao progresso, aos triunfos técnicos da cidade grande, e se atira com delícias à irregularidade, à pouca higiene, à promiscuidade e ao “à vontade” da vida no interior. Pois dispondo dos armazéns iluminados à luz fria, com câmaras de refrigeração e câmaras de calor, recebendo de tudo pelo telefone, galinhas mortas e depenadas por olho eletrônico, legumes congelados e esterilizados, e todas as féeries possíveis na matéria do enlatamento e do empacotamento, o carioca desdenha todos esses primores e corre para a feira livre, para as suas ruas sujas de cascas de banana, as barracas mal cheirosas de caixote e lona, as galinhas em jacás, os ovos sem carimbo, os maços de couve que todo mundo apalpa, as vagens que ele pode quebrar no dedo, as laranjas cheias de equimoses. A feira livre representa um regresso de duzentos anos na arte de comerciar com gêneros ― e é por isso justamente que agrada ao nosso coração.

De todas as do país ― serão as do Rio as mais simpáticas. Tenho-as visto por esse Brasil todo ― e excetuando as do interior do Nordeste que são ― rurais e folcloristas ― bem diferentes ― não vejo nenhuma que se compare às feiras cariocas. Nem mesmo a de São Paulo, embora em lugar nenhum haja mais planturosas que as paulistas, mais coloridas, mais alimentícias. E mormente variadíssimas no seu contingente humano ― italianos, japoneses, austríacos, alemães, sírios ― são verdadeiras feiras internacionais.

Aqui no Rio não: tudo é nacional. Os produtos, os fregueses, os vendedores, inclusive os portugueses. Esses, aliás, mais do que ninguém. Porque haverá aspecto mais antigo na paisagem brasileira do que o português? Antes mesmo de haver brasileiros, se é que havia, senão portugueses? Afinal, são eles o ponto de partida, nós apenas a consequência.

Enche a feira toda uma rua com os seus desvãos. Milho verde, berinjelas, laranjas-pera, montanhas russas de tomates ― a ilusão da abundância no meio da nossa miséria. E carnes secas, e paio, e mortadelas, e quilômetros de linguiça fina e feia, e toucinho. E as barracas dos macarrões e a barraca dos azeites, e a barraca das flores com suas margaridas escandalosas e os cravos que já viram melhores dias. E depois há as zonas acessórias da feira ― as bancas que não são de coisas de comer, as barracas de variedades que vendem açucareiros de matéria plástica, vestidos feitos, redes de nylon para os cabelos, flores de papel, grampos e pentes, frascos de brilhantina, chapéus de praia, colheres de pau: tudo que no comércio especializado de hoje em dia é vendido em compartimentos estanques, em lojas separadas e até em ruas separadas, cada loja e cada balcão ciumentamente restrito ao seu ramo, o homem que vende fitas jamais vendendo panos, o que vende copos de alumínio ignorando de todo a arte de vender combinações de seda rayon bordadas à máquina.

Na feira tudo se merca, sem noção de hierarquia nem de classificação zoológica. Vi um homem que trazia um leitão num cesto seguido de um menino com um sabiá numa gaiola, eram ambos pai e filho e ganhavam a vida juntos. Creio que o que melhor pode definir a feira é o título daquele belo livro de Orígenes Lessa: O feijão e o sonho. Sim, a feira dá o feijão mas dá também o sonho ― o leitão e o sabiá. Tudo sem garantia de legitimidade, sem segurança de procedência, sem preço fixo. Mas como é agradável e aventuroso, que sensação de alto negócio quando se consegue obrigar o freguês a baixar dois tostões no preço do tomate. Disputamos, discutimos, vivemos perigosamente aqueles momentos, ora pensando que somos roubados, ora que roubamos ― porque o prazer da pechincha está justamente na convicção que nos deixa de que lesamos o vendedor em nosso benefício. E falamos com desconhecidos, brigamos, regateamos, confraternizamos com os homens nossos irmãos; e afinal o que mais interessa nesta vida não são os contatos humanos? O desiderato principal do ser humano é viver em sociedade. Por isso mesmo aceita ele exilar-se do meio rústico para a aspereza e a nudez das grandes cidades: para se sentir no meio de cem mil, de quinhentos mil, de dois milhões dos seus semelhantes.

Só depois de muito civilizados, de muito sofisticados, convencemo-nos de que desdenhamos a convivência do próximo e fugimos ao seu contato. Mas a prova de que essa convicção é postiça, artificial, é que à menor oportunidade nós a traímos e mergulhamos de corpo inteiro na promiscuidade e na aglomeração ― basta ver um carnaval, uma procissão, uma feira livre...

rachel-de-queiroz
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