Escrevem-me vários leitores pedindo que, como sertaneja, proteste contra o costume das festas juninas à caipira, celebradas em todas as cidades do Brasil, festas em que se ridiculariza o nosso homem do campo, apresentando-o desdentado e descalço, em “travesti” cada qual mais grotesco.

Ora meu Deus, irmãos, para que tantos melindres? Que mal faz que eles brinquem? Então vocês não veem que nessas festas de caipiras o homem da cidade está procurando se libertar durante algumas horas da sua condição de exilado e de enjaulado, e tentando, por meio da fantasia, recuperar um pouco da felicidade e da inocência campestres? Que a roupa de riscadinho, a saia de chita, o chapelão de palha, são os instrumentos mágicos aos quais atribuem o condão da transitória mudança?

Alegam vocês que eles não procuram representar o homem do campo tal qual é, mas a sua caricatura o mais ridícula possível. Será possível que não compreendam que caricatura é homenagem? Só se caricaturam figuras de importância e triste do homem público que ainda não teve, circulando nas folhas, a sua cara deformada pela mão dos caricaturistas da moda.

O homem da cidade é sempre um mutilado. Um adaptado à força. Parafraseando Victor Hugo, é “un anje déchu qui se souvient des cieux”... Há, é verdade, os citadinos que alimentam a ilusão de que os seus pulmões só podem respirar o ar urbano, e que morreriam como peixes na praia se os tirassem do asfalto. Mas esses coitados são como galinhas de quintal pequeno: nasceram em chocadeira, criaram-se com ração balanceada. Nunca viram um pé de capim nem uma minhoca, e supõem, naturalmente, que o mundo é limitado por quatro muros de tijolo e que além desses muros só existe o abismo. Os demais, — e são a grande maioria — sentem nos ombros o peso das asas inúteis, e sabem, nostalgicamente, que por trás do muro há árvores, mato verde e sol. E passam a vida inteira alimentando essa nostalgia, tentando refazer um mundo mais ou menos natural dentro da sua prisão de cimento, ou ensaiando fugas; por isso correm às praias, vão às corridas de cavalos, plantam flores nos apartamentos, regateiam nas feiras livres. E as festas caipiras são outras das modalidades dessas fugas.

Vede-os em bando, ridiculamente vestidos ao que imaginam ser a nossa moda, de cócoras em redor de uma fogueira mal amanhada, tentando assar milho verde e batata doce nas brasas; como são patéticos e como se mostram felizes. Queimam os dedos nos tições, sapecam o milho, largam as batatas no borralho; e comem aquilo tudo misturado com carvão e cinza, meio cru e intolerável, certos de que estão sendo deliciosamente caipiras, e de que se apossam, com aquelas palhaçadas ingênuas, do nosso segredo de felicidade.

Pois não se enganam, eles nos supõem felizes. Que sabem das nossas inquietações, das nossas angústias, dos nossos sonhos impossíveis? Eles que põem toda a esperança da sua vida num rádio a prestações ou num sofá-cama para a sala, pensam que somos como crianças descuidosas, que se nos preocupa o momento presente, e por isso dormimos em redes ou esteiras, e andamos descalços e não sabemos as últimas notícias do mundo inteiro. Se não fosse assim, se tivéssemos juízo e aspirações, porque não nos escravizaríamos ao terno de casimira, aos calos nos pés e ao trem de subúrbio e não entraríamos também na disputa pelo rádio e pelo sofá-cama?

Assim cuidam; e assim nos invejam. Julgam-se seres complexos, metafísicos e aerodinâmicos. Nós, sertanejos, somos simples figuras de um idílio rural, retardados felizes, sem responsabilidades nem cuidados. E quando querem fugir aos complicados problemas dos seus mundinhos exterior ou interior, vestem o que convencionaram ser as nossas roupas, imitam o que imaginam os nossos gestos, e gozam algumas horas dos prazeres simples atribuídos a nós, primitivos. Recurso antigo, aliás. Não se lembram de Maria Antonieta, fantasiada de mulher do leiteiro, fazendo queijos no Petit Trianon?

Deixemos que se divirtam, os pobres. Afinal a vida deles é bem estúpida, bem vazia e bem triste. E pensando bem, caricatura por caricatura, também nós, sertanejos, sabemos fazer as nossas. E temos outra malícia, outra perversidade...

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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