Seria curiosa uma estatística computando os campos de futebol que existem nos arredores do Rio. Só os daqui da Ilha chegariam para abastecer de esporte qualquer cidade grande; porque os campos rebentam em toda parte, se agasalham em qualquer aberto de praia, em qualquer nesga de quintal ou qualquer barriga de rua. Bem defronte de nossa casa, por exemplo, temos uma mal-aventurada pracinha onde se bate bola das seis da manhã até noite cerrada, revezando-se as turmas de jogadores, a começar do pessoal miudinho que joga com bola do tamanho de um punho, até o team de homens feitos que vem de camisa e calção e usa pelota de couro conforme o modelo olímpico.

Fala-se muito na indolência do mestiço nacional, já se escreveram bibliotecas acerca da incapacidade da nossa raça para tudo que exija esforço físico. Mas basta a paixão brasileira pelo futebol para mostrar exatamente o contrário: no ardor com que se entregam ao “esporte das multidões” nossos patrícios em todas as idades e de todas as condições sociais, está o maior desmentido da nossa preguiça. Pois quem ousará dizer que é o futebol esporte de preguiçoso? Nele suam e se esbofam não só os 22 jogadores e o juiz, como a própria “torcida”, que se descabela, urra, rola de arquibancada abaixo, invade o campo e enfrenta a cavalaria.

Outra das nossas celebradas incapacidades que a prática do futebol desmente é a famosa incapacidade de organização do brasileiro. Pois parece um milagre ver como nos lugares mais humildes se formam teams — compostos na maioria de rapazes que moram mal, comem mal e dormem pessimamente, empregados em maus empregos, vivendo de biscates ou totalmente desempregados — mesmo porque a prática intensiva do esporte não dá margem para muito trabalho.... Há, é verdade, os heróis que ao cabo de oito horas no pesado rebentando o corpo, ainda vão para o campo treinar, depois das quatro da tarde. Mas esses são exceções. O comum é o esporte absorver tudo, homem e profissão. Pois, como dizíamos, aqueles rapazes que comumente nada têm para si, surgem em campo de camisa e calção regulamentar, chuteira, meias, e alguns até se dão ao luxo de joelheiras.

Aqui na Ilha tem um uso muito simpático: cada clube que se organiza escolhe como patrono, — ou antes, elege presidente um aficionado que tenha as suas posses, cabendo a este não apenas a honra da investidura como o encargo de fornecer uniformes ao team. Há presidentes que a bem dizer se arruínam e fazem dívidas por amor do seu clube, mas no dia do jogo não se vê em campo jogador descalço nem de camisa diferente.

O campo já é outro problema; fornecem-no ou os terrenos do governo, que aqui ainda são muitos e baldios, ou cede-os um proprietário entusiasta do esporte. A rigor, para haver um clube basta que os sócios possuam as camisas e as chuteiras e as traves do gol. O resto, jogadores e campo se improvisam em qualquer parte. Para os primeiros nunca faltam voluntários, antes pelo contrário, até excedem à procura. Para o campo, tendo os seis paus com que se fazem os gols, tudo serve, rua e praça que seja — nem para outra coisa existe à toa neste litoral tanta beirada de praia vazia.

rachel-de-queiroz
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