Se eu fosse nascida em terras de Europa, ou pelo menos houvesse morado na Provença, não admira. Mas na Provença passei apenas duas curtas semanas, tempo contado de turista, que não dá para estratificar memórias, simplesmente acumular recordações de passagem. Mais provável é que a sugestão do local e das figuras me fosse dada pela convivência e a conversa da minha querida amiga Béatrix Reynal, a poetisa, que é provençal de puro-sangue. Provavelmente as lembranças que ela evoca, as saudades que chora e canta, junto aos amigos, são os maiores responsáveis por esse sonho singular. Ou então se confundam imagens vistas, lembranças ouvidas; as palavras da amiga, a paisagem inesquecível, afinal tudo entra pelo coração e fica lá morando como coisa própria.

E ainda há uma terceira hipótese: talvez tenha sido a sugestão maior provocada por um canto de cigarra. Era aqui na ilha, de tarde, e fazia calor. Uma cigarra cantava debaixo da mangueira, uma cantiga alta e metálica, feita a daquelas cigarras que ouvi lá mesmo, na Provença, se desfazendo em canto ao sol, debaixo das moitas, ao pé dos muros caiados, na estrada que vai de Avignon a Arles. E ao som da cigarra, dormi. Dormi e estava na Provença, e não me perguntem como sabia onde estava, o que é que me dizia que ali era a Provença. Sei apenas que reconhecia o local e a terra, como uma imutável lembrança guardada muito fundo. E me repousava justamente na encosta de uma daquelas colinas dos Alpilles, espécie de charneca cheirosa e selvagem, perfumada de alfazema.

Perto havia uma cerca e atrás da cerca um renque de damasqueiros carregados de fruta; e um moço de chapéu grande, trepando numa escadinha, colhia de um em um os damascos vermelhos.

A manhã era nova, o sol ainda era doce, mas já uma cigarra cantava. E devagarinho, pela estrada irregular, onde uma poeira já se levantava, veio caminhando o vulto de uma velhinha, embiocada de preto. Depois, em direção contrária à da velha, surgiu outro vulto, um padre, grande, magro, mas que em vez da comum sotaina negra, trazia uma veste roxa, com uma espécie de pala atrás, cujas abas flutuavam como asas. Daí, talvez nem fosse padre. Mas foi o que pensei, ou o que me foi sugerido. E então os dois vultos se encontraram, a velha muito curvada arrastando os pés, o padre no seu passo ligeiro, enfunado. E com o encontro estacaram, e longamente conversaram ― isto é, o padre explicava, apertava as mãos, insistia ardentemente; a velha o escutava como desatenta, apenas abanava a cabeça, com um não mudo. Aí o padre caiu de joelhos, segurando a saia negra da velha, que parecia uma imagem, curvada para terra, incapaz de se comover. E então o som da cigarra foi ficando cada vez mais forte, e já não era a cigarra, era um menino de blusa larga, a descer lentamente a ladeira suave, e a tocar numa flauta de bambu. E o menino parou junto ao grupo formado pelo padre e a velha, e a velha estendeu a mão ao rapazinho, que não a segurou, pois tinha as suas ambas ocupadas com a flauta, sem parar de tocar. A velha tateou um pouco, agarrou-lhe a aba da blusa, o menino saiu andando, devagarinho, a tocar e a puxar pela velha, e então se entendeu que ela era cega.

E o padre ficou imóvel a olhá-los, e eles se sumiram bem devagar numa ondulação do caminho; o som da flauta aos poucos se confundiu de novo com a cantiga da cigarra, e o sol se tornou mais forte, e havia uma tristeza pesada no ar, que subitamente se tornara quente e grosso.

E acordei aflita e sem fôlego, e vi que estava na minha rede sob a mangueira, com uma réstea viva de sol bem por cima dos meus olhos.

Mas a história da velha, passado o sonho, não a esqueci como outros sonhos. Por que sonhei aquilo? E por que sabia de ciência tão certa, com aquela lucidez onisciente de quem sonha, que estava na Provença ― (França, Europa, outro mundo) ― na Provença precisamente e não em nenhum outro lugar?

Talvez a minha cara Béatrix, que além de poetisa é provençal, como já foi dito, entenda e me explique o mistério do meu sonho. Será que aquela terra, embora num contato curto de semanas, deixa a sua marca na gente? Em todo o caso, conto o sonho, porque diz que sonho contado não se cumpre. E Deus me livre de ver novamente a cara trágica do homem da roupagem roxa, o vulto impiedoso da velha cega. Talvez revisse com prazer o menininho da flauta. Mas pelo preço de reencontrar os dois, desisto dele. E espero rever a Provença sob outros auspícios ― só o ar claro, e os damasqueiros, e o camponês que nos oferece fruta à beira da estrada, e os cabarés sombrios onde se toma em grossos copos o vinho generoso, e os renques de oliveira com a sua folhagem triste e cor de cinza, que parece brigar com o céu azulíssimo.

rachel-de-queiroz
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