A janela de Iaiá dava para um pequeno jardim. Um pé de laranjeira, um pé de malva-rosa. Cobrindo a cerca alta, um jasmineiro todo estrelado de flores. Uma roseira de cacho. Touceiras de manjericão ao pé da parede; e, bem defronte à janela, na sua forquilha de três braços, a panela de barro com o craveiro — desses cravos brancos pequenos, apertados, de coração rosado e tão cheiroso que de noite, com a janela trancada, o perfume passava pela telha-vã e chegava até a rede onde Iaiá dormia.

Aquele jardim fechado, minúsculo, cheiroso e fresco, era talvez a coisa única que Iaiá podia chamar de seu, no mundo inteiro. Na casa-grande, invadida pela criançada rumorosa, pela mãe dominadora, pelas cunhãs da cozinha, se o quarto do oratório era o refúgio da avó — o pequeno jardim era o oratório de Iaiá. A família pensava que Iaiá adorava plantas —, aquela menina é louca por um pé de flor! Mas o que a moça adorava mesmo era a intimidade, o silêncio, o ar fechado e secreto daquele quadrado sombrio, entre a cerca e a parede — onde podia proibir a entrada até das crianças, sob o pretexto fácil de que iriam fazer malinação. E lá dentro, isolada com as suas flores, cavando, podando, adubando, arrancando mato, Iaiá podia pensar que não estava naquela terra nem no meio daquela família. Que era filha única de um casal rico, e morava numa casa de rua com piano na sala, e ia ao cinema e à avenida, e tinha um namorado de terno de casimira. O jardim, tão pequeno e cultivado, não tinha nada com a bruteza do sertão, não sofria alternativas de seca nem de inverno; nele as estações não variavam, a rega substituía a chuva, a boa terra vegetal que Iaiá fabricava enterrando folhas, a sombra da casa que poupava do mormaço as plantas mais mimosas — tudo criava um clima artificial, um clima estrangeiro, gostava Iaiá de pensar. Ah, de todas as palavras da língua, era essa que Iaiá considerava mais sedutora: estrangeiro. Significava falar outra língua, trocada, incompreensível e tão belíssima! Ver neve, comer maçãs no pé — imagine! E uvas e cerejas e peras e pêssegos — todas essas coisas que ela só conhecia de livros — os poucos, pouquíssimos livros que Iaiá possuía, lidos, treslidos, decorados: Toutinegra do moinho, Amor de perdição, O grande industrial, O mártir do Gólgota, O moço loiro e, escondido, disfarçado dentro de uma velha camisola aberta de renda, no fundo do baú — a Dama das camélias...

Com certo sentimento de culpa, porque ainda não cumprira as suas tarefas do dia, Iaiá especava com varinhas de taquara os ramos do craveiro que o vento da noite tombara. Mas logo se pôs a sonhar. Podia, quando morrer, se enterrar no seu jardim. Ao pé da rosa de cacho, com uns ramos do jasmineiro se derramando por cima da cova...E Iaiá se imaginava morta, de vestido branco e capela, no caixão branco e azul... Mas pensando em véu e capela, mudou de ideia — e agora se via vestida de noiva, saindo para casar na cidade, com um buquê feito de todas as flores do seu jardim... Marcava o dia do casamento para quando a laranjeira florasse — fora mesmo pensando secretamente no seu casamento que plantara a laranjeira... E o buquê teria jasmins, rosas e bogaris — sim, ainda não se mencionou o pé de bogari, redondo e coberto de botões, bem no ângulo da cerca! E no centro do buquê um molho cheiroso de cravos... E agora Iaiá pensava no cortejo, irresoluta... Como o faria? De trem? Tão vulgar! De automóvel — mas havia tão poucos automóveis na pequena cidade próxima, impossível de caber toda a família. O que mais lhe agradava era um belo cortejo a cavalo, dezenas, talvez uma centena de cavalos, levando os pais, irmãos, tias, primos, conhecidos; e à frente os dois — ela à garupa do noivo, o véu flutuando ao vento, as saias espalhadas sobre a anca do cavalo, a cauda apanhada no seu braço esquerdo, o braço direito rodeando o peito do noivo, com a mão sobre o coração dele... Ah, o noivo. Iaiá não sabia como seria o seu rosto, mas sentia com uma força de verdade aquele coração quente batendo debaixo da sua palma aberta. Era o abraço mais bonito que podia conceber — os dois correndo em cima do cavalo, o ar veloz lhes batendo no rosto, aquele torso forte de homem encostado ao seu peito... meu Deus, tão comovente, que Iaiá tinha vontade de chorar.

Mas, lá de dentro da cozinha, a voz da mãe gritou:

— Iaiá, você já deu comida aos pintos?

E Iaiá acabou de atar o galho do craveiro com uma palhinha de milho, soltou um suspiro fundo e foi pilar o xerém para dar comida aos pintos.

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