Outro dia conversava com um amigo a respeito dessa questão de ir ou não ir à Europa e, coincidência engraçada, logo depois recebo carta de certa pessoa, que me conta estar com possibilidade de ir à Europa ou aos Estados Unidos e não sabe como se decide. Pede-me conselho e é fácil dar conselho, mormente a quem, como eu, não conhece os Estados Unidos. Vá à Europa! Na dúvida, vai-se sempre à Europa.

Sim, já sei, a Europa tem os seus defeitos, terá mesmo os seus crimes. Mas é a mais dignificante experiência do homem no planeta todo.

Pergunta-me essa mesma pessoa se eu dispusesse do meu tempo e de mais dinheiro, onde é que viveria. É difícil fazer planos baseados em imaginações, mas, nesse caso, creio que dividiria o meu tempo entre Ceará, Paris e Rio ― Ceará no inverno, Paris na primavera ou no outono, Rio nessa estação incaracterística e deliciosa que vai de maio a setembro. Sem esquecer uma passagem por Cabo Frio, sempre que possível. ― Mas isso são sonhos, possivelmente irrealizáveis. Vamos tratar do que importa, que é a sua viagem.

Sim, torno a dizer, vá à Europa. Depois pode ir aos Estados Unidos. Mas, inclusive por uma questão de cortesia, em primeiro lugar visite a douarière, depois o filho.

Diz você que tem medo de ser turista. Ora, criatura, o turista nasce, o turista não se faz. A pessoa nasce turista por maldição que vem do berço, e nada que possa fazer durante a vida a libertará dessa tara. Quem tem alma de turista é turista em qualquer parte, até na própria cama. Esse gosto de viver em rebanho, essa procura superficial do pitoresco, de admirar o óbvio, de documentar fotograficamente, para ter provas concretas do que viu, já que não lhe fica nenhuma marca interior da experiência: Se você nasceu para turista, há de ser turista até num passeio a Paquetá. Mas se você não nasceu turista...

Já pensou no sul da França e, no sul da França, a velha cidade de Arles, e o cemitério de Alyscamps, mais velho que a cidade, com sua aleia de ciprestes e sarcófagos que não lhe falam de morte ― falam antes de imortalidade? E a erva cheirosa dos Alpilles, e Nimes, onde se correm touros na arena romana; ou chegar a Marselha e descer Canebièrre, na hora em que se acendem as luzes? Pense na Itália, pense em Florença. Meu Deus, Florença. Cinco séculos de turismo ainda não lhes desgastaram sequer a pátina das pedras. E veja o povo, tome uma estrada de automóvel, saia pelos caminhos da Toscana, pare numa casa onde se bebe vinho e onde se conversa. Aprenderá receitas de chá para cólicas e prometerá saquinhos de café, que talvez mande.

Falei em Paris ― acima de tudo, vá a Paris. Mesmo por uma semana, procure “morar” em Paris. Faça hábitos, entre na igreja de Saint Germain na hora da primeira missa, quando o crepúsculo da manhã ainda deixa na nave uma sombra noturna. Vá às tardes quentes tomar sorvete num café da Place de La Republique junto com as gordas mães de famílias, as filhas e os fiancés das filhas. Converse com a velhinha de chapéu de veludo que toma sol e lê Ronsard numa encadernação preciosa, às nove horas da manhã, no jardim do Luxemburgo. Ela talvez lhe recite um poema, na sua voz frágil, e você pensará se não foi a ela, então linda e loura, que o poeta chamou de mignonne, quatrocentos anos atrás.

Vá à Suíça, gostará de ver a água azulíssima do Ródano sob a ponte de Berna, os ursos que são o totem da cidade; em Genebra pode espiar no binóculo do parque a silhueta próxima do Monte Branco ou, na estação ferroviária, as moças hindus que traçam o sari e deitam olhos compridos aos grossos suíços de faces rosadas que esperam o trem, mais pontual que os relógios da terra.

Vá a Dijon (volte à França, sempre se volta à França!), coma um coq au vin feito com legítimo Borgonha, colhido num vinhedo ali perto; depois retorne tremulamente aos seus quatorze anos, visitando o palácio de João Sem Medo e a sombria igreja com suas gárgulas apavorantes.

Eu ia dizendo que vá à Espanha. Mas não sei. A Espanha é bela, o povo espanhol é um dos tesouros do mundo. Mas há certos contatos que é preciso evitar, como se evitam aos moços a leitura de certos livros. A familiaridade com o pecado é tão perigosa quanto a familiaridade com a tirania. E você, de passagem, vendo só os aspectos amenos da ditadura, adoçados especialmente para os turistas, acabará pensando que o mal não é tão feio como o pintam, e no convívio irá gastando suas arestas de medo e repulsa ― e pensando que é talvez possível um compromisso.... Vá, porém, à Inglaterra. Ah, quando penso que só vi a Inglaterra durante dez dias, quando dez anos de vida seriam poucos. Não pude conversar com o homem que leva a cadeira de lona para debaixo dos arbustos de Russel Square, põe no colo o seu cachorro e fica a estudar uma gramática italiana, enquanto ao seu redor roncam o tráfego e a cidade imensa. E recordo o cervejeiro triste de perto da Torre de Londres que detesta antiguidades e sonhava em vender vinhos da Grécia. E recordo o macaquinho tísico do zoo, e as pedras polidas da beira do cais, que certa velhota impostora me contou estarem ali desde o tempo dos reis saxões.

E ainda restam os Países Baixos e a Alemanha e a Escandinávia, e a Europa do lado de lá, onde não é fácil ir. E deliberadamente não falei em Portugal, porque para nós Portugal não é Europa, é o Brasil da outra banda...

Sim, vá à Europa. Se você pode ir agora à Europa e não foi, já pensou que talvez você morra, ou morra a Europa, e então que prejuízo irremediável o seu!

rachel-de-queiroz
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