Ouça a crônica de Rachel de Queiroz na voz de Bia Paes Leme,, coordenadora de música do IMS.

Uns meninos meus amigos ― todos pequenos, quase em idade de jardim de infância ― me pediram uma história, e como sou do tempo antigo e só conheço velhos contos do Trancoso, procurei lhes narrar a história de João e Maria e a feiticeira da casa de açúcar. Mas se esperava algum êxito, e até mesmo, se por amor desse êxito fiz algum esforço histriônico, me enganei redondamente. Aliás, não é bem isso: não me enganei de todo, atirei no que vi e matei o que não vi. Porque a atenção dos meninos foi despertada por coisas muito diversas daquelas que interessavam à nossa geração. Crianças de hoje se interessam principalmente por mecânica, amores, brutalidade, invenções científicas, gases mortíferos, medicina popular e até problemas de abastecimento. Já não acreditam em bruxas, embora acreditem em coisas muito mais cretinas do que uma honesta feiticeira, como por exemplo o Superman, o Fantasma Voador, o Homem Leão e outros chatos. Perderam quase completamente o senso lírico, não ligam a florestas, nem a madrastas, e a ideia de uma casa feita inteiramente de açúcar lhes parece um desperdício tão improvável quanto grotesco. De modo geral não se compadeceram com a triste sorte de João e Maria, pois João não sabia brigar nem Maria tinha glamour. O primeiro comentário que fizeram é que os dois protagonistas eram muito pequenos ― assim não tinha graça: porque eu não contava uma história de mocinho.

Quando chegou ao pedaço em que João vai soltando na terra uns caroços de milho, a fim de marcar o caminho de volta, a princípio eles acharam a ideia engenhosa; o que estragou o efeito foi um pretinho danado de esperto que comentou com ceticismo: “Sujeito bobo! Fosse eu garrava o milho e punha no borralho para fazer pipoca...” E então a história teve que ser interrompida para discutirem se pipoca tinha vitamina, se angu não era melhor. Contudo essa discussão de valores alimentícios não me deixou uma impressão de adiantamento, antes de confusão, pois, segundo me pareceu a ideia que eles fazem de vitamina é a de uma espécie de micróbio ou elixir mágico, cuja função específica é lhes dar capacidade agressiva, boa pontaria e lhes fechar o corpo contra bala, ferro e veneno.

Chegando o trecho em que a velha prende os garotos no chiqueiro para engorda, o desprezo da assistência pelos heróis chegou a ser desconcertante. Ora, afinal ficar preso num chiqueiro, engordando, mostrando um rabinho de lagartixa, é a última baixeza, a derradeira degradação para uma dupla de heróis. E cada um dos ouvintes começou a contribuir com as suas sugestões de fuga e desforço que iam desde a liquidação da velha simplesmente a bala (nenhum admitia a ideia do pequeno João não andar armado) ou enforcada, ou com mordedura de cobra, ou com raio elétrico; os mais cavalheirescos queriam luta leal, a murro e a pontapé, com final amordaçamento da bruxa, atada de mãos e pés.

E não sei a que nível miserável teria descido perante a meninada a minha reputação de contadora de histórias, se não fosse o final salvador, que levada pela vaidade ferida, dramatizei o mais que pude, confesso agora: a velha chiando no fogo, pedindo “água, água meus netinhos”! e os garotos zombando: “Azeite, senhora avó”! Foi como conseguimos nos reabilitar, o velho conto e eu. Aquela crueldade da fogueira onde assava a pobre bruxa, sua agonia e seus gritos quase arrancaram palmas.

E com os aplausos e os sorrisos calei a boca entristecida, não sei se com vergonha daquelas concessões a que me rebaixara ante às exigências do público, ou talvez assustada com a dureza daqueles coraçõezinhos de fera.

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