Terá no máximo 16 anos. Parece 13 ou 14. Contudo já carrega o filho nos braços, sobe e desce com ele do bonde exibindo grande eficiência maternal, aprendida nos tempos em que andou alugada como pajem. Foi batizada por Sebastiana, nome que lhe deu a mãe, devota do glorioso mártir São Sebastião; a pequena, se lesse o seu Freud, veria que apanhara complexo por causa daquele nome horroroso, mas assim mesmo o aturou durante vários empregos. Quando, porém, já se ia enfeitando para mocinha, entrando numa nova casa, ao lhe perguntarem como se chamava, renegou o Sebastiana e declarou como seu o nome de Ivone que sempre lhe pareceu lindo e que já usara com vários namorados. (O filho, aliás, já não carrega, feito a mãe, o peso dum nome de cativo: chama-se Nelmo, que era o galã de uma novela que passou quase um ano levando no rádio). Saiu Ivone deste emprego, que aliás lhe agradava, só copeiragem no apartamento dum casal sem filhos, envergonhada, quando começou a engordar por causa do bebê. Nos meses piores esteve em casa da avó, que ainda é viva e lavadeira, e mora na favela do Cantagalo. Nelmo nasceu no Hospital Miguel Couto e agora passa os seus dias numa espécie de creche mantida por uma baiana, em dois cômodos de um casarão antigo, na rua Barão da Torre. Já lhe estão nascendo os dentes e a mãe paga pela pensão a diária de seis cruzeiros. Claro que Ivone nada recebe do pai do garoto. Nem jamais cuidou nisso, o filho tem-no como seu unicamente; mesmo por que o pai não podia, é soldado e anda sumido. Ela própria também não conheceu pai, como não o conheceram sua mãe, nem sua avó. É uma raça de amazonas, essa de crioulas e mulatinhas da cidade. Vivem por si, dos homens só recebem um pouco de amor, — nada pedem, nem dinheiro, nem companhia permanente, nem proteção marital. Às vezes elas próprias os sustentam, quando gostam muito deles; pagam o aluguel do barraco no morro próximo ou do quarto na casa de cômodo que outrora foi palacete de barão. Dão-lhe de vez em quando um terno novo e lhe fornecem os miúdos para o gasto cotidiano. Mas fazem-no sem obrigação, coisa de quem ama e pode. Porque elas podem, foram independentes muito antes de haver na burguesia moça independente tipo americano, — independência econômica, a única que vale, tanto para os povos como para as mulheres. Vieram elas, naturalmente, como herança do cativeiro. Filhas de mucamas e de mães pretas, o Ventre Livre e o 13 de maio foram-nas soltando pela cidade, desamparadas e ao mesmo tempo preciosas pelo potencial de trabalho que representavam. Vivem pela cidade inteira, mas creio que hoje o seu quartel general é na zona sul; pelo menos é onde se encontra a sua camada mais representativa: as mais bem vestidas, as que mais ganham, mais sofisticadas e conscientes da sua independência. Como disse acima, são verdadeiras amazonas. Não devem ser confundidas com mulheres da vida porque todas ganham com o suor do seu rosto, no serviço duro, o próprio sustento, o sustento dos filhos e ocasionalmente o do homem amado. São cozinheiras, copeiras, empregadas de todo serviço, pajens, babás, governantes de senhor distinto que mora só. Sabem o que valem, que ninguém pode passar sem elas, e por isso mesmo não se barateiam, nem consegue intimidá-las a guerra aberta com as patroas reacionárias: aspeto doméstico da luta de classes travada exclusivamente entre mulheres. E por isso mesmo, sabe Deus com que armas, com que argumentos e com que processos, de vale-tudo, de parte a parte. Foi-se o tempo da portuguesa moura de trabalho, da crioulinha cria da casa que acordava às cinco para coar o café e ia deitar à meia-noite depois de lavar a louça da ceia. Elas hoje descobriram que precisam passear, amar, tomar banho na praia e ir ao cinema como qualquer cristão. A prática do amor mais ou menos livre é antes uma contingência da sua condição tradicional, vivendo como vivem desde meninas pequenas na cozinha dos outros, sem olho maternal que a proteja nem autoridade de pai que as defenda. Vida de família é coisa que ignoram, sempre se reproduziram assim, por linha feminil, concebendo o primeiro filho quase sem saber porque, criando-o, entretanto, o melhor que podem, mudando de emprego em emprego em busca de patroa que aceite cozinheira com criança, coisa que as damas só fazem quando ganham muito na troca, se o trabalho é demais, se o ordenado é ínfimo, ou em ambos os casos juntos. Se a sorte ajuda, como é o caso de Ivone, obtém uma vaga num quarto onde já mora uma colega com o companheiro; paga pensão numa creche e arranja emprego bom, babá de uma menina só, em casa de alto tratamento, como disse o anúncio.

Depois do primogênito é até negócio dar à luz a mais alguns filhos, porque os mais velhos criam os caçulas e mãe, empregada sem dormir no aluguel, passa a noite com eles, e chega a ter a sensação dum lar. Crescidinhos, cada um vai tomando o seu rumo, os meninos de engraxate ou carregador de feira, as meninas de pajem, tal como o foi a mãe na idade delas; e por mais sacrifícios que custem quando são pequenos, em compensação representam amparo quase seguro quando a mãe envelhece e já não pode trabalhar.

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