Esta noite sonhei com Maria Antonieta, rainha de França. Não é que eu tenha preferência especial por essa senhora, mas o fato é que a gente não regula os seus sonhos. O mais que pode fazer é confessá-los, arrostando o perigo das interpretações dos psicanalistas; perigo maior porém é calar, pois sonho escondido arrisca acontecer.

Sonhei pois com a rainha e foi um sonho singular, ― sonhei que ela reencarnara aqui. Dizem os espíritas que alma não tem sexo e tanto pode vir ao mundo no corpo bruto de um varão como em seguida se encarnar sob a forma delicada de uma princesa. E no meu sonho assim aconteceu com a loura austríaca, que aqui baixou em figura de homem, tornando a nascer em brasileiras terras de Minas.

Cento e tantos anos depois que os malvados lhe cortaram a cabeça em praça pública ― mais de um século, senhores — e mudou de mulher para homem e mudou de língua e mudou não só de pátria, mas até de continente, ― e contudo não aprendeu nada. Sim, pois era essa a tragédia do protagonista do meu sonho: não aprendeu nada. Os defeitos que tinha, conserva-os. Os erros que cometeu, repete-os, monotonamente, obstinadamente. Até as preferências mais mínimas: — ela, por exemplo, adorava brilhantes e por um colar de brilhantes se perdeu; pois passou pela cova mas continuou fiel ao velho instinto, tanto é que escolheu para nascer em Diamantina!

Falei nos erros; cá estão, os mesmos, coitada. Já naqueles tempos de França, ela se sabia encantadora e disso abusou. No novo corpo procede igual, carrega demais no simpático, acredita na própria lenda, e quer viver só disso. Era estouvada, inquieta, detestava as obrigações da corte, as durezas e monotonias do ofício de reinar. E continua ― agora que é homem com maior atrevimento, ― e em vez de fugir para o parque ou para o baile, mete-se num avião e se dana pelo mundo, deixando a fidalgaria a mofar nos salões, a remoer ressentimentos e a tramar maldades.

Tem a paixão da construção. Mas se dantes fazia um palácio, uns tanques de peixes, aqui em vez do tanque faz represas com cassinos em redor, e em lugar do Trianon faz uma cidade. Ergue o seu novo Trianon no planalto goiano e se parte a brincar de vaqueira e bandeirante; e vê com desolada irritação que o povo não se rende à beleza das colunatas nem aos encantos do jardim silvestre, nem acha tão lindo assim o quadro da rainha pastora; queixa-se então de que o povo é mau e incompreensivo. Mas não se lembra que o povo deixa de comer para lhe pagar o idílio campestre, e de tanto raspar os bolsos já está com os dedos em sangue.

Como já se disse, a princípio ela cuidou em ganhar os corações com um sorriso e uma anistia. Mas logo verificou que amor não se compra só com um gesto e muito menos com moeda de inflação. E aí lembrou-se de que é arquiduquesa, que usa a faixa ao peito e tem o seu pendão hasteado em palácio e ameaçou e falou em voz grossa e bateu no peito. Mas também a ameaça de força não deu jeito, e o rumor dos descontentes continua. Li num cronista que a rainha, nos seus últimos tempos, quando ia na sua carruagem de Paris a Versalhes tapava os ouvidos com bolinhas de cera para não escutar as maldições da plebe, e assim poder manter o altivo sorriso. Já agora ela inventou coisa mais eficaz e, em vez de tapar os ouvidos, tapa, com a portaria famosa, a boca dos maldizentes.

Mas o mal maior de Maria Antonieta, em todas as suas sucessivas encarnações, não é o amor da pompa, não é a ligeireza de egoísta amável, não é a inconsciência de construtora de palácios sobre alicerces de miséria, não é mostrar gráficos de prosperidade a quem tem fome, procurando alimentá-los com sugestão — na mesma linha daquela sua piada histórica, quando mandava que quem não tinha pão comesse brioches; não, o pior da rainha é a sua entourage. São os homens fortes e são os homens hábeis, e os mágicos das finanças e os zeladores da autoridade real. Mas o forte só emprega a força para sustentar a injustiça, e os hábeis usam a astúcia para o seu jogo de prestígio e os financistas operam as suas mágicas para arranjar dinheiro que satisfaça aos onerosos caprichos da rainha, ― sem falar da multidão miúda dos que não servem para nada e rodeiam a rainha com lisonjas e sorrisos e só prestam para intrigar, comer, cevar, subir.

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Felizmente, agora, o povo perdeu o costume de cortar a cabeça dos seus reis, quando se fartava deles. Com a moda do governo a prazo fixo, seria muito oneroso e impraticável guilhotinar um rei ao fim de cada quinquênio. Mas não sei se a disponibilidade, em seguida ao poder, não é castigo mais duro do que a morte. Pensem em Maria Antonieta, ao termo do mandato, a pé, sem carruagem e sem viscount, a vagar melancolicamente pelas ruas da cidade, a escutar as pragas e as queixas, a ver de perto o que as alturas do trono não lhe deixavam enxergar, a receber os pontapés da turma gorda dos ingratos.... Talvez seja pior que a guilhotina. Mas, tornando a citar os espíritas, diz que só assim talvez a alma aprende um pouco e consegue vir melhor na seguinte encarnação.

rachel-de-queiroz
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