Quando menina ganhei um cavalo de sela, de raça campolina; era “melado”, como por lá dizem; a palavra pode ser feia mas exprime exatamente a cor que ele tinha: dourado de mel. Chamava-se “Quebranto”, e sabia de nascença todas as marchas sem precisar de ensino, desde a “estrada” macia de viajar à “baralha” de exibição. Era um bicho fidalgo e precioso, para mim não havia tesouro no mundo que o pagasse e no entanto morreu de uremia aos quatro anos de idade. Não me deixaram usar luto por ele, o que foi uma injustiça, pois só me cobrindo toda de preto poderia eu exprimir e extravasar a dor daquela perda: e assim ficou-me o recalque dela por muito tempo.

Mas veio um ano atrás do outro. E aos dezoito anos, com o primeiro dinheiro que tive de meu, já não foi um cavalo, sucessor de “Quebranto”, que tratei de adquirir. Comprei foi um automóvel, de segunda mão, a prestações, — automóvel, aliás, que me foi confiscado pela família em prazo breve; — mas isso já é outra história e não vem ao caso. A moralidade da reminiscência está na constatação de quanto foi súbita a morte do prestígio do cavalo, antigo e fiel companheiro do homem desde as idades mais bárbaras.

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Que o mais nobre dos animais, talvez mais belo entre todos, está concluindo o seu tempo de serventia entre nós. E nem se diga serventia propriamente, que era mais uma associação indissolúvel entre cavalo e cavaleiro aquela composição híbrida que transformava os dois num centauro.

Morreu primeiro que todos os cavalos de guerra, qual o general de hoje pensa mais em cargas de cavalaria, que eram no entanto como o próprio tropel de deuses em combate? Hoje são as máquinas brutas de ferro, em vez do ginete romântico, que ganham batalhas.

Morreu o cavalo do fiacre, magro, urbano, filósofo, carregando pelas cidades a pressa dos homens de negócio, a ternura clandestina dos amantes. Substituiu-o o táxi impudente, que leva o seu carreto humano permanentemente vigiado pelo olho do motorista no espelho retrovisor.

Morreu também o cavalo de viagem, a besta paciente e rija que comia léguas de sertão, de pampa ou de pantanal, que subia serra atrás de serra, vadeava rios a nado, levando o seu cavaleiro por distâncias quase sem fim. Agora é o caminhão que corta o sertão de alto a baixo e onde o caminhão não chega, vai o seu mano volante, o avião.

Já quase morto está o cavalo de sela, antiga joia dos moços ricos, dos senhores de engenho, das sinhás de luxo. Hoje eles só querem é Cadillac. No mais agreste interior, no Cariri, no Planalto Central, lá estão elas e eles de óculos escuros e vocabulário esportivo, rodando no carro americano ou europeu, importado de contrabando, importado de qualquer jeito, contanto que o obtenham.

Cavalo hoje só nas fitas de cowboy e nos prados de corrida. Até o cavalo do vaqueiro vai perdendo a tradição. Os rebanhos diminuem, as fazendas se apequenam, o gado, valioso demais, já não anda solto no campo. É contado a dedo, tem pedigree, veterinário, anel no nariz, curral coberto, goza de todos os encantos da civilização. Ainda existem vaqueiros, ainda. Vestidos de couro, montados no seu bom campeiro, com sela bordada. Mas é raça que vai se extinguindo; a arte do vaqueiro é atualmente quase como a cavalaria nos tempos de D. Quixote: decadente, levada a ridículo.

E, pensando bem, o cavalo morre vencido por um único inimigo: a gasolina. Morre afogado em petróleo. O petróleo o matou, tirou-lhe a realeza entre os homens, transformou-o em simples bicho decorativo, como o unicórnio e a águia heráldica. Ou traste indispensável ao jogo, nas corridas. É uma excrescência social, um ente quase sem função. Os camponeses da Europa ainda teimam em puxar arado com gordos percherons de vulto elefantino; mas o trator a gasolina, no campo contíguo, acaba vencendo a obstinação do rústico, e vendo como a máquina do vizinho come terreno e ganha tempo, o camponês acaba vendendo a sua parelha de tiro a fim de pagar a primeira prestação do trator.

Outros teimosos são os grã-finos da Gávea ou da Lagoa, que insistem em atravessar o asfalto montados nos seus puro-sangue. Mas não lhes adianta a correção impecável da montaria, não adianta o balé vertical na sela, pleque-pleque, do seu trote inglês: servem de divertimento aos moleques e são chamados de exibicionistas pelas senhoras que chegam às janelas dos apartamentos. Sem falar no risco de atropelamento pelo eterno inimigo, que provavelmente vem à disparada, cego e bruto, buzinando como uma hiena, emboscado por trás da primeira esquina.

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