É gordo, antissemita, patriota e asmático. No terreno da terapêutica, dá-se à homeopatia e às ervas medicinais. Em matéria de religião, cultiva o materialismo, mas com reservas; claro, detesta superstições. Só acredita no que veem seus olhos. Gosta de se gabar de que é “caboclo”, mas na verdade ninguém sabe que sangue tem ele. Entende de astronomia e mecânica, pinta quadrinhos a óleo, com modelos “imaginação”. Não ele que se fosse submeter a copiar qualquer coisa, até mesmo a natureza. Desenha casas com um caminho branco à frente e cisnes nadando em lagos azulíssimos. A mulher há 25 anos que o venera, embora mentalmente o engane com Charles Boyer e Pedro Vargas. E se desforre das insuficiências da vida e do vil quotidiano carioca acompanhando as novelas em série, mês atrás de mês. Aliás ele também as escuta, à noite, e opina severamente.
Como “caboclo”, o meu herói sonha com um Brasil sem judeus nem galegos, um Brasil brasileiro, cheio só de autóctones de tanga e cocar, armados de metralhadora, fazendo uma limpeza nesta terra infeliz.
Há desconfiança de que outrora ele amou Plínio Salgado. Mas o fato é que desde maio de 38 largou tais amores. Interpelado um dia sobre essa história, declarou que detesta “pequenas violências”. Os integralistas deram parte de fracos e só lhe conquistaram o nojo. Fosse com ele, teria liquidado tudo, não se punha com meias medidas. Evidentemente, não é homem de meias medidas. O que o inibe um pouco é certo temor pela polícia, incoerente em pessoa de tal truculência. Põe a culpa na asma; não fosse a asma, a Canalha ia ver.
A Canalha é meio vaga. Pode ser o governo; não, não é o governo. Nem é este ministro, nem aquele conde, nem o general Fulano; ou ser o partido comunista? Nela se inclui, decerto, a alta finança internacional e a alta política. Os polvos, os tubarões, Churchill, Stalin, Attlee e Trumann. Nacionais, não nomeia ninguém que não pesca peixe miúdo. Além disso, estão perigosamente próximos, muito ao alcance da voz.
Abaixo da Canalha, há outra entidade mais ínfima, mais ignara e anônima: A Negrada. Houvesse ele nascido em outro século, tivesse um pouco mais de coragem e saúde, seria comandante de navio negreiro ou capitão do mato. Haveria de beber sangue de negro; beber não, que tinha nojo. Haveria de vomitar sangue de negro. Ai, como os odeia. São a nódoa de uma civilização. O cidadão desta terra não pode manter o seu estado de branco; a Negrada não conhece mais o seu lugar. Ah, se subisse UM HOMEM ao governo, para mandar fuzilar a pretalhada e atirar a carniça para o urubu comer.
Às vezes chega em casa trêmulo, bate a porta com estrépito, põe-se em mangas de camisa e pega da pena para escrever uma carta anônima ao jornal. Explica ao Senhor Diretor UM CASO REVOLTANTE: “As camadas inferiores estão inteiramente sem freio. Ainda hoje, no bonde Praça Onze, vinha um cavalheiro distintíssimo (era ele), lendo placidamente o seu jornal; de súbito, sente-se empurrado por uma negra boçal, carregada com dois moleques malcheirosos, que praticamente o atirou fora do banco, a pretexto de arranjar um lugarzinho. O cavalheiro, chocado e constrangidíssimo, cedeu IRONICAMENTE o seu pedaço de banco e foi pendurar-se ao balaustre. Mas teve pena de ser um gentleman, consciente dos seus deveres para consigo próprio e a Sociedade, senão teria dado o castigo devido àquela atrevidaça. Para onde vai este pobre país, Senhor Diretor?”
Contudo, tais cartas ainda lhe carregam mais a bílis, em vez de descarregá-la. Os diretores, vendidos todos ao judaísmo internacional, jamais as publicam. Ele já disse entretanto que um dia desses desabafa nos ineditoriais. Embora os ladrões cobrem uma fortuna por quaisquer duas linhas nos seus pasquins.
Por falar em dinheiro, poderemos agora entrar no capítulo das suas finanças. É funcionário público, e com os últimos aumentos, passou a perceber 1.500 cruzeiros por mês. Defende-se, porém, de qualquer modo, tem biscates misteriosos, mora num apartamento na rua Riachuelo e comprou um terreno para WEEK-END na estrada Rio-São Paulo. E ainda dá casa e comida a dois filhos malandros. (A filha que teve, expulsou-a de casa, e NEGA-LHE A EXISTÊNCIA. Cerra porém os olhos às visitas secretas que a mulher faz à rapariga. O seu mal é ter o coração muito bom, sempre o diz).
O seu HOBBY são os pombos-correios. Fá-los viajar do apartamento da Riachuelo para a casinha da Rio-São Paulo e da Rio-São Paulo para a Riachuelo. Confia-lhes bilhetinhos que dirige a si próprio, e os quais vai colher pessoalmente no sábado à tarde ou segunda pela manhã, conforme os mensageiros tenham partido da cidade ou do campo. Solta-os pouco antes de tomar o trem, e chegando ao seu destino cronometra o tempo, como se se tratasse de cavalos de corrida. Às vezes, quando vem carregado com as gaiolas dos pombos, nas viagens de ida e volta dos fins de semana, tem encrencas terríveis com os condutores de trem, de ônibus e de bonde. Gaba-se até de já haver levado três choferes ao distrito: dois galegos e um negro. Só que uma vez o delegado, mal informado, prendeu a ambos. A ele e ao motorista. Datará desse dia a sua repugnância por desentendimentos com a polícia?
Dizem que na repartição é bom funcionário, fiel ao livro do ponto, temente dos seus superiores. Chegam a acusá-lo de fazer correr listas para a compra de mimos de aniversário, oferecidos ao chefe da seção. Ele explica que aquilo é um simples gesto de cortesia, de homem para homem.
Em breve estará aposentado, com 35 anos de serviço público. Alimenta grandes esperanças para essa época. Quando houver garantido o futuro dos seus, então mostrará QUEM É. Dizendo isso, corre o olhar em círculo pela roda do café, e os detém, como uma nuvem negra, sobre um dos mais humildes membros da assistência, que se encolhe todo, ameaçado.
Depois dá um aceno breve de cabeça e sai para a fila da manteiga, antes de tomar o bonde que o levará à sua residência.