Na minha rua moram muitas moças de diferentes profissões ― funcionárias, manicuras, comerciárias, enfermeiras. Tem uma que trabalha de noite e a princípio até maldei dela porque vestia uns eslaques muito justinhos, desses que mais parecem malha de bailarina; nos pés umas sandalinhas douradas, na cabeça um lenço estampado que vinha se atar sob o queixo; uma grande bolsa debaixo do braço e se tocava para o Largo da Glória. Mas depois não maldei mais porque vi que, sob o lenço da cabeça, trazia o cabelo todo enrolado em bigoudis, como quem está no cabeleireiro. Ora ― é elementar, meu caro Watson ― ninguém vai fazer o que se poderia pensar que ela fosse ― de bigoudis no cabelo!

Uma tarde nos encontramos no mesmo bonde; ela subiu para junto de mim, apanhou um jornal que eu derrubei e fez amizade comigo. Ia para o ensaio ― pois o que vai fazer noturnamente no Largo da Glória é justamente apanhar aquele bonde que a leva ao teatro. Trabalha de corista, está numa peça horrível que só dá vez para a vedete ― a senhora nem calcula uma coroa com bem quarenta anos, cheia de dentes postiços, o maiô é de barbatanas, e as meias de malhas de aço para aguentarem o açougue que já está todo despencando! O coreógrafo já disse mesmo que ela devia ser guardada em frigorífico, para ver se endurecia um pouco mais!

O contrário da coroa-vedete é evidentemente a nossa corista, e, pelo que parece, corista mesmo excelente. Tem as longas pernas do ofício, cabelos pintados de vermelho, uma cara de boneca pálida ― Só se dá ao trabalho de pintar o rosto quando entra em cena. De dia vai a uma aula de balé e me confessou que o seu secreto desejo é aprender a falar inglês para tentar a vida nos Estados Unidos. Lá, moça pode fazer teatro que todo mundo tem consideração. Aqui no Brasil, qual, a turma pensa logo que não é artista, é horizontal (há quanto tempo eu não escutava essa palavra, creio mesmo que nunca a escutei, apenas a li nas reportagens de política dos vespertinos). Com esse desiderato ― de ir falar inglês e ir aos Estados Unidos ― cultivou algum tempo o trato com marinheiros americanos em Copacabana. Mas depois do caso da Aída Curi ficou com medo. Objetei que não foram propriamente os marinheiros americanos os responsáveis pelo triste fim da pobre Aída, ela, porém, retrucou não sei se com lógica mas decerto com verdade, que foi pelo projeto de conversa com os marinheiros que começou tudo. Quando aqui esteve Sammy Davis procurou falar com ele, sempre foi fã. Mas qual, é mais fácil falar com o Presidente. Barraram na porta do hotel, e quanto a vê-lo trabalhando ― quem é ela para conhecer algum homem que a pudesse levar ao Golden Room? Convidam quando muito para inferninho e olhe lá.

Tem cuidado consigo porque é moça religiosa, devota de São Judas Tadeu; agora tem devoção também com o “berço” da pequena Tânia Maria que a fera da Penha matou. Rezou lá um terço e obteve a graça que pediu. Perguntei se a graça era assunto de amor ― mas não era não, era para uma coleguinha sua amicíssima conseguir se livrar de um chato que tem mania de fazer escândalo na caixa do teatro e uma vez até quis tirá-la de cena aos bofetões.

Não tem família no Rio ― se tivesse iria lá morar em pensão! ― Ficou tudo na pequena cidade de Minas de onde ela saiu para fazer carreira aqui. A mãe tinha trabalhado em circo quando mocinha, depois casou com o dono de um bar, largou a profissão. Mas passou-a no sangue para a filha e o pai não se opôs, que é fatalista. No começo até lhe davam uma mesada, pequena. Agora, o que ela ganha já chega para pagar alguma roupa, a vaga no quarto, o almoço; as outras refeições, quando não tem convite, substitui por média com pão e manteiga. Gosta de convites e presentes, mas nem sempre aceita ― homem quando dá está mais é pedindo. Não passa, contudo, sem namorado, mas namorado mesmo, não é “caso”. Ela não quer nenhum “caso” definitivo enquanto não subir ao menos a vedetinha, porque atrapalha. Às vezes tem vontade de ser modelo, mas não pode pagar o curso e hoje essas casas que fazem desfile só querem modelo de curso, passou o tempo do amadorismo.

Com o corpo que tem já recebeu vários convites para fazer strip mas tem horror. O biquíni já é sacrifício, além do mais esse negócio de pouca roupa não dá futuro. Não sai dali. Tem medo de duas coisas no mundo, de engordar e se apaixonar ― por quem não mereça, é claro. Pois se vier uma paixão por um moço direito que ajude a carreira dela, será um sonho. Mas sonho neste mundo de hoje, eu hein? Estou acordada!

Falta acrescentar que tem dezenove anos, altura, 1,68; cintura, 58; busto, 88; quadris, 89; tornozelo, 19; coxa, 50. Sabe essas medidas de cor; e as anuncia como se fossem um número de telefone; tem razão, aliás, porque são os seus títulos, seu capital de trabalho. Toma banho de sol na cama, quando o sol das duas da tarde entra pela janela do quarto. Não tem tempo para praia, e tomando o sol assim sozinha, o bronzeado fica mais por igual.

Lê histórias de amor em quadrinhos, só gosta de fita triste, um dia ainda há de comprar uma boa vitrola, porque o que adora neste mundo é disco. A voz, se a cultivasse, talvez desse alguma coisa. Perguntei qual é na verdade o desejo mais forte do seu coração, ― afora os Estados Unidos. ― Ela, corou ― acabou confessando: ser a vedete de uma grande revista, e descer a escada, na apoteose, carregando duas toneladas de paetê e de plumas...

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