27 nov 1948

Moços que partem, velhos que ficam

É o tempo uma coisa que nas nossas mãos se arrasta, mas logo que se vê fora do nosso alcance, voa. O presente é de uma lentidão de tartaruga, enquanto o passado parece que tem asas de pássaro. E assim, a hora que estamos vivendo consegue ser infinitamente mais comprida do que anos e anos que já vivemos: uma infância inteira se recorda num minuto, enquanto são precisas centenas de palavras para repetir um diálogo de ainda agora.

As coisas de guerra, por exemplo. Enquanto se guerreava, parecia a todos que era aquela a guerra mais longa e mais sofrida da história do mundo, com meses de mil dias e dias de mil horas — mais comprida do que todas as Guerras Púnicas e a Guerra dos Cem Anos juntas. Mas hoje, que já se passaram quatro anos sobre a vitória na Europa, a impressão que se tem é que o período foi de horror, porém foi curto, e tomara nós que o próximo conflito não se prolongue mais do que o último.

Fiquei pensando nisso depois de ver num atrasado jornal cinematográfico as comemorações do quarto aniversário do desembarque na Normandia. Como já ia distante aquele tempo, como era antiga e esquecida a nossa angústia daqueles dias em que toda a sorte do mundo dependeu de relativamente tão pouco. Pois (nisso pelo menos creio que todos nós, do lado de cá, estamos de acordo) seja qual for o mau uso que continuemos a dar à nossa paz, não pode haver dúvidas quanto ao medonho, o irreparável desastre que teria sido a derrota aliada, naquela época.

O que mais me impressionou, entretanto, ao ver o newsreel, no cineminha aqui da Ilha, foi a ausência dos moços nestas comemorações de 1948, em contraste com a presença soberana deles durante a luta, em 1944. Só se veem, nestas celebrações atuais, veneráveis senhores de fraque e colete claro, cavalheiros gordos de cabelos brancos, que fazem discursos e peroram com trêmulos na voz e carregam buquês de flores e se esganiçam em francês e inglês e se dão a accolade e se apertam as mãos e são os donos absolutos da festa. Tal contraste é mais chocante porque a primeira parte do jornal é justamente um retrospecto das cenas de desembarque — o pulo de bailarinos dos moços carregados de ferro que saltavam das barcaças para o mar, o arranjo febril das armas de defesa, os grupos silenciosos e rápidos que corriam no meio da metralha, a floração de paraquedistas no céu, o voo baixo dos aviões protegendo ou destruindo. Nessas fotografias de então não vemos nem sinal dos velhos. Onde estavam esses que agora se enfeitam e usam cartola e são os senhores do mundo? Em que abrigo se escondiam, em que porto seguro, em que país neutro, tomando remédios, protegendo a saúde, pondo naftalina nos fraques, preparando o rascunho dos discursos comemorativos? E tramando as suas intrigas, e prontos a se apossarem da vitória dos moços para darem dela uma conta tão péssima. Ai, assim é o mundo; morrem os moços e os velhos celebram. Saem dos seus abrigos e comemoram, enquanto os donos da vitória ou estão sepultados debaixo das cruzes de pau nos cemitérios militares ou, se ainda não morreram, trazem pelo menos o coração esmagado debaixo das cruzes de prata, de ferro e de bronze com que os condecoraram os velhos, como se simbolicamente os enterrassem. Pois os velhos queriam o mundo outra vez, ansiosos por prepararem outra guerra, e matarem mais moços e novamente vestirem o fraque e fazerem discursos, chorando os heróis.

rachel-de-queiroz
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