Sim, irmãos, é ela própria, a Ásia-57, conhecida geralmente por Singapura ou Asiática. Não sei se mata, estou esperando ainda. Mas é de morte. Começa sorrateira, como a gripe vulgar de Lineu. Coriza, cabeça inchada, olho vermelho, pele febril. Aos poucos vai se instalando: a dor pelos ossos do corpo, de um em um. Depois corre os dedos pelos músculos, repuxando, machucando. Ao cabo das experiências, se acomoda preferencialmente na barriga das pernas, nos rins e na nuca. E a moleza que vai se generalizando. Para levantar o braço, você tem que apelar às suas reservas morais. Abrir os olhos, ― só levanta a pálpebra metendo o ombro e fazendo força. O defunto que a gente carrega dentro parece que está ganhando a batalha: sei que o corpo, depois de pedir cama, pedir rede, sem achar agasalho, começa a pensar com suspiros na macieza quente da terra nossa mãe ― sete palmos lá fundo e outros sete palmos dela por cima, tapando a luz do sol que tanto dói na vista.

Enquanto isso, a dor nos rins se agrava. A gente não sabe se é do rim mesmo, ou se é de tanto ficar deitada. Saco de água quente. Melhora, mas queima. E queimando também não é vantagem. Os doutores comentam, misteriosos: “Antibiótico não adianta. O papel é ficar mesmo no velho ácido acetilsalicílico”. Bobagem. Como se a gente não soubesse que é aspirina mesmo. E vitamina C. Acho que quando sair desta ― se sair ― vou rebentar em tomates, cenouras, laranjas-pera, flores e folhagens, de tanto tomar vitamina.

Por que não se vacinou? E quem disse que tem vacina? Vacina pinga aos pouquinhos para médicos, enfermeiras, os que correm mais risco, está certo. Eu sempre achei que em caso de naufrágio, salve-se primeiro a tripulação, que é quem faz força. E vacina também tem para os de cima, para os que mandam e podem. Para o resto só na próxima epidemia. Muito bem, repito. Para que esse fingimento de servir primeiro a nós da arraia miúda? Não é nem tempo de eleição. Se fosse tempo de eleição, sim. A gente ia ver ministro, senador, general e presidente, de seringa na mão, dando vacina em analfabeto. Mas não há de faltar outra peste, quando for oportuno, que santo forte é padrinho deles.

Por ora diz que não há ovos em quantidade suficiente; pois acontece que a vacina se fabrica com embrião de pinto. Ai, as galinhas, iguais à maioria parlamentar do presidente, não lhe atendem aos apelos, nem se importam com as metas. Só põem ovos de tabela alta e em quantidade reduzida ― diz que estão cobrando quase nove cruzeiros por um ovo. Senhores, até as galinhas sabotam o programa oficial e sopram a espiral da inflação! O que vale é que, quando estivermos em Brasília, não precisaremos mais de galinhas. Lá quem manda é a perdiz, sim as melhores perdizes do mundo, conheço pessoalmente.

Quem sabe as próximas vacinas já não serão feitas com embrião de perdiz goiana?

Mas voltando à Asiática: posso afiançar que é péssima. Guardem-se dela os que puderem. Comigo já anda pelos doze dias, comigo foi a Cabo Frio e voltou: me dá até remorso pensar que arrisquei os amigos aos micróbios da malvada. E tão bem que me trataram! Que vinho de Colares, seu Carlinhos! Até tive a impressão de ser personagem do A. de Azevedo: Lembram-se de O badejo? “... a senhorita bebeu Bucelas e bebeu Colares...”. Não bebi Bucelas, mas bebi Colares. E esse vinho me faz lembrar a recente condecoração ganha pelo presidente, a chinesa, a das nuvens propícias. Porque um velho vinho daqueles é também uma nuvem propícia. E já que tocamos nisso: será que os chineses também estão tomando parte na nossa brincadeira de gozar os voos presidenciais? Houve grande sutileza, é certo, ― mas que cheira a piada, cheira. Diz aquele mocinho Joppert, o que sabe tudo a respeito da China, que o chinês é um povo com alta noção do humorismo. Está se vendo, não é?

*

Meu Deus, com esta asiática, esqueci as datas e vejo no jornal que hoje é sete de setembro. Acendo a televisão para ver a parada: lá vão desfilando os fuzileiros. Que beleza, que beleza! Se eu tivesse um filho fazia dele fuzileiro naval, nem que obrigasse. Mas qual, não precisava obrigar: filho meu adoraria ser fuzileiro. O speaker (este ano muito menos loquaz, seja louvado por isso) diz que é o corpo militar mais antigo do Brasil. Claro, e o mais bonito, e mais romântico, até o nome é belo e marcial, sem falar na farda: fuzileiro! Marcham com precisão mecânica ― mas o que há de bonito em desfile de soldado é o elemento humano: um é mais baixo, outro mais alto, este torceu levemente o rosto ― quem sabe quer espiar a namorada que o aplaude? Faz um sorriso de leve.... Sim, é gente, não é boneco! Um tem o casquete mais de lado, este bem aprumado. E agora vem a banda, tocando feito anjos músicos e fazendo evoluções de balé. Acho que a banda dos fuzileiros tem qualquer coisa de uma escola de samba, nos seus grandes dias.

No céu os jatos fuzilam zuuuuuuuum! Também tem moço lá dentro, não tenham medo dessas máquinas ferozes, minha gente, tem moço lá dentro, achando graça no barulho, voando baixinho, fazendo travessuras para o povo apreciar.

A dor de cabeça parece que fura os olhos, e assim tenho que fechar os ditos. Quando os abro, a câmara foca o palanque: o general paraguaio firme, as moças sorridentes, Juscelino discretamente boceja. Coitado, imagina se ele também está com asiática. Quem sabe não foi para o defender da patrícia lá deles que os chineses lhe deram as nuvens propícias? E com piada ou sem piada, nuvens propícias para você também, leitor.

rachel-de-queiroz
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