Não, não é verdade quando políticos, querendo fazer média, dizem que a inquietação existe apenas aqui no Rio e que o homem da província só pede aos seus dirigentes paz e silêncio para poder trabalhar. É mentira, ou é pelo menos uma meia verdade, nascida da má observação e do interesse. É certo que o homem do interior não se agita como o carioca. Mas é que ele vive do lado de fora da empanada do circo e, portanto, não assiste ao trabalho dos palhaços, dos equilibristas e dos engole-fogo. Assim, não colabora na claque e nem vaia os mais desastrados. Mas, usando de outra comparação, pode-se dizer que o homem do interior é como quem assiste a futebol pelo rádio. Não pode atirar garrafadas ou flores no time ou no juiz, mas torce, e como torce! Quando ele mostra desinteresse é porque está aborrecido, porque acha que há marmelada no jogo.

A gente pensa que eles não sabem de nada. Sabem, sabem muitíssimo bem. Um matuto semianalfabeto conhece em linhas gerais a situação do país, e, se ignora os nomes deste ou daquele figurão, sabe direitinho quem são os ladrões e quem são os heróis — e é isso que importa. Agora, o que ele é, é um desencantado. Curioso, como ficou cético o homem do interior. Crédulos, ignorantes, sugestionáveis, são estes frívolos homens urbanos, que um discurso ou um demagogo podem arrastar a qualquer parte. Mas lá dentro do Brasil o demagogo encontra outra resistência. Primeiro, porque ele não fala a linguagem local. Há na sua frase, nos seus conceitos e possivelmente na apresentação dos seus ideais humanos e sociais, uma falta de afinação essencial com os conceitos e ideais do homem da província. Porque o cidadão do interior é mais realista. Vive mais perto da terra, tem as suas reivindicações reduzidas às necessidades essenciais. Há uma desproporção tão grande entre o que o demagogo prega como conquista social e as coisas a que o povo de terra-adentro aspira e necessita que todas as pregações cívicas daquele parecem a este abstratas ou pueris. Maioria absoluta ou relativa, parlamentarismo e presidencialismo, voto secreto, reforma da Constituição, isso realmente são apenas palavras para ele. Porque na verdade, negadas ou concedidas, não lhe alteram essencialmente a vida em nada.

Ai, mas isso não quer dizer que ele esteja morto. Basta apenas que uma ideia ou uma esperança o convença ou o apaixone. Temos então a máquina desencadeada, e aí não se pode saber nunca quando é que ela há de parar.

Por isso considerei uma grande imprudência a declaração de certo homem-chave do momento de que “não fui ditador porque não quis”. Pode ser que ele se proclamasse, pode ser que ele se aguentasse no poder por algum tempo. Mas a minha impressão pessoal é que ele ao fazer as contas dos seus trunfos pensou apenas em termos de tanques e tropa aquartelada, na plebe das cidades apavorada ante o aparato bélico. Não cuidou nesse imponderável, nesse fundo de mar — nesses sessenta milhões de criaturas espalhadas por aí — e que não são nem cegas, nem surdas, nem mudas, nem doidas. Esta gente que não parece mas está atenta. E que principalmente está farta.

Sim, achei a palavra. Eles não são indiferentes, nem amorfos e cretinos como se diz e se crê. Estão é fartos, cheios. Teria pensado o homem-deus-da-guerra que essa gente toda — sem se impressionar com o armamento, mormente porque não o vê, porque o sabe longe — que essa gente poderia não concordar?

Um sintoma evidente do que digo foi o estranho interesse que esse povo dito indiferente — porque não se pronunciou a 24 de agosto, nem a 10 ou a 21 de novembro, nem a 31 de janeiro — o interesse apaixonado que ele tomou pela aventura Veloso-Lameirão. Ande-se por qualquer cidade ou povoado do sem-fim do Brasil. Quixadá ou Vitória da Conquista, e suponho que igualmente no Sul, pois este Brasil é todo igual, benza-o Deus! E ver-se-á, como eu vi, a singular paixão desses aparentes apáticos pela “revolução do Amazonas”, como a chamam. Não quero entrar aqui no mérito do gesto dos aviadores. Discuto apenas as suas repercussões. Que foram mais profundas, muito mais apaixonadas do que aqui se imagina. Acaso ou ciência, os moços de Jacareacanga souberam tocar uma veia escondida no coração do povo. Seria o panache, seria o próprio desespero da causa, seria o louco desafio de um contra milhões. A verdade é que eles hoje andam na boca dos cantadores e nos sonetos das páginas literárias dos jornaizinhos de aldeia. Estão nos apelidos de rua, e até no nome dos meninos que se batizam.

Sim, o homem de interior já descobriu, sozinho, que tudo está gravemente errado nesta terra. Não se mexe ainda porque é da sua natureza o ser vagaroso, porque carece de liderança e carece principalmente de um ideal ou de um programa. Mas a sua inquietação, o seu descontentamento e a sua capacidade de demonstrar esse descontentamento são fatos pouco reconhecidos e contudo inegáveis.

Disse certo autor que o principal fator de êxito da pregação cristã na sociedade romana foi a circunstância de ter o povo ficado ateu, descrente dos deuses velhos, pronto para receber no coração e no altar vazios o deus novo. Pois, comparando, pode-se dizer que o nosso povo politicamente anda ateu. Cuidado se aparecer algum evangelista pregando uma fé sedutora.

Não há povo amorfo. Não há massa bruta e indiferente. A massa é formada de homens e a natureza de todos os homens é a mesma: dela é a paixão, o amor, a gratidão, a cólera, o instinto de luta e o instinto de defesa.

Todas as grandes convulsões históricas nasceram dessa incompreensão essencial: os homens de cima pensam que a massa é carne morta porque a trazem debaixo dos pés. Mas a carne viva não é carne morta, por mais pisada. Cito só um exemplo: lembram-se da China — massa amorfa, povo sem substância, vencido pela velhice e pela fome, de que todo europeu arrancava o seu quinhão, e humilhava, abusava, vendia e alugava? De repente, quase sem aviso, em que fera se transformou a massa amorfa!

Este é o meu humilde, sincero, honesto depoimento: o povo, o lá de dentro, o homem do campo, da pequena cidade, da mata, da serra, do pampa, está ficando desesperado. Ganha tão miseravelmente que, se não reduzisse as suas necessidades a quase o mesmo nível de vida de um bugre, não se poderia manter vivo. Em lugares onde o jornal diário é de 20 cruzeiros (e há muitos lugares assim), o feijão está a 12, o açúcar a 14, a carne a 40. Pão nem se come mais. Um metro de pano custa no interior mais caro do que aqui, e assim um talher, um cobertor, um carro de linha. O transporte não existe mais, as vias-férreas falidas, a gasolina inacessível. Instrução — bem, isso são luxos.

Os “donos” do Brasil se embalam, portanto, numa falsa segurança. Pois se há país sem dono é este. Se há um país desenganado, envergonhado de si mesmo, vencido, faminto, nu, doente, analfabeto, irritado, é este. E descrente, e danado da vida. E muito mais pronto do que se imagina a acompanhar alguém que lhe fale ao coração, que lhe dê não só esperança de dias melhores, mas um pretexto para se orgulhar de si mesmo. Que lhe devolva o seu amor próprio, pois sessenta milhões de pessoas têm a mesma necessidade de amor próprio que uma pessoa sozinha multiplicada por sessenta milhões de vezes.

Oxalá esse alguém, esse estandarte, essa coisa que o povo espera, não seja um guia de desgraça. Não seja um novo Antônio Conselheiro, porque, se o for, talvez o destino deste país seja se acabar como um imenso, um espantoso Canudos.

rachel-de-queiroz
x
- +