Sempre digo que não posso responder correspondência, que isso é noutra seção da revista, e lá estou quebrando a praxe; mas é que se trata de consulta por demais lisonjeira para não ser devidamente respondida: Pergunta-me uma senhora “Se eu a aconselho a batizar uma filhinha por Rachel, porque o nome lhe parece bonito e de sorte”.

Conselho difícil de dar, minha senhora. O nome tem os seus prós e os seus contras, e como hei de saber o que no futuro a sua garota interpretará como sorte? A minha, por exemplo, há de lhe servir?

E quanto a ser nome bonito, propriamente não o é. Os ingleses o pronunciam mais ou menos “Rêitchul”, os franceses “Raxél”, os judeus “Rô-hêl” e nem uma dessas pronúncias é bonita; em português ele é ríspido, cortante, e com as suas duas sílabas curtas parece uma chicotada. Não acha mais bonito um desses outros suaves nomes de mulher tais como Lúcia, Alice, Helena, Alba, Dulce, ou o eterno e universal Maria?

Pergunta-me a senhora por que me deram esse nome. Herdei-o, com o sobrenome, da matrona magnífica que foi minha avó paterna. Os parentes que não gostam de mim talvez digam que foi mal empregado. Mas a verdade é que embora me separando da outra dona Rachel à distância enorme que se estira entre um santo e um pecador, o fato é que não lhe herdei só o nome, mas muitas das feições, certos modos de falar, certos cacoetes, certos rasgos de temperamento — coisa que muito me ufana, pois neste mundo enganoso vale tanto a aparência quanto a verdade. Sempre me considerei privilegiada entre as outras netas por causa desse nome e dessas semelhanças.

Diz uma enciclopédia que “Rachel” significa “a cordeira”. Verdade, verdade, não tenho muito de cordeira. Mas o erro há de ser meu e não do nome. Quem sabe não será amplamente cordeira a sua pequerrucha? Nestes tempos de matanças e guerras nunca hão de ser demais os pacíficos, que levem adiante a herança da concórdia e da mansidão. “Rachel” é também uma planta da família das amarilídias e talvez por causa da flor da tal amarilídia é que o pó de arroz de cor creme claro diz-se “rachel”. Não deixa de ser uma emoção agradável para a proprietária do nome vê-lo reproduzido aos milhões em caixas perfumadas, ocupando lugar de honra nos toucadores das amigas, das rivais, das inimigas. Infelizmente o tom de pó “rachel” anda caindo da moda, devido ao uso moderno dos tons queimados de pele; o brando colorido mate do “rachel” já não satisfaz, e o que se quer são os ocres em todos os matizes — o rosé, o noisette, o oriental, etc. É uma pena.

Antes que outro o diga, é bom lhe lembrar que se trata dum nome mais judeu que as colunas do templo de Salomão; usá-lo implica sempre num risco, porque o antissemitismo é onda que vai e vem. Se a hispanidad triunfar um dia no continente quem sabe se o simples fato de ter tal nome não obrigará sua inocente filhinha a usar no peito a estrela de David? Sem falar no perigo dos campos de concentração.

Homônimas ilustres temos tido, sua menina e eu, através da história. Houve certa Rachel, também chamada a “Judia de Toledo”, donzela de Israel por quem se apaixonou El-Rei Afonso VIII de Castela; cativo da hebreia, por amor dela abandonou o rei sua esposa Leonor de Inglaterra. Pobre Judia de Toledo; teve sina igual à de Inês de Castro, morrendo às mãos dos nobres castelhanos no ano de 1178.

Madame Rachel foi célebre atriz francesa, embora nascida na Suíça; diz Larousse que ela ressuscitou a tragédia na França e brilhou no gênero clássico. Chamava-se na vida real Elisa Felix, brilhou para Luís Felipe e Napoleão III, e morreu ainda muito nova para uma trágica — aos 38 anos de idade.

Há também com o nosso nome embora na sua versão italiana — Donna Rachelle Mussolini, viúva do Duce. Por sorte, o que consta é que Donna Rachelle jamais foi fascista, vivia em guerra aberta com o seu Benito; bom sinal: parece que o nome é mesmo alérgico a fascismos. A prova mais concludente em favor de Donna Rachelle é que não foi ela que morreu junto com o esposo, nem a arrastaram nas sarjetas de Milão, nem a penduraram pelos pés, em praça pública. Quem o acompanhou foi a outra, a bela Claretta, enquanto Dona Rachelle chora em paz os seus mortos — digo os filhos, que decerto não há de chorar o tirano.

E por fim apresento a estrela delas todas, aquela bíblica Rachel “formosa de rosto e de gentil presença” como a descreve o Livro Santo (Gen. 29, 17), esposa amada do patriarca Jacob, mãe de José e Benjamim. Por seu amor trabalhou Jacob sete anos seguidos findos os quais (diz ainda o capítulo 29 do Gênesis, versículo 30), “Jacob, tendo enfim alcançado por esposa a que desejava, a preferiu à mais velha no amor que lhe tinha e continuou a servir outros sete anos”.

Mas falar nessa Rachel é falar no soneto de Camões, o célebre:

“Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Rachel, serrana bela...”

Pois que, passados hoje 368 anos da morte do poeta, tal é a força eterna da arte que o soneto nos parece feito infalivelmente para nós próprias; no fundo do coração não nos podemos deixar de confundir com aquela outra Rachel que era sozinha o prêmio pretendido e de nos doer o duro penar de Jacob “que, com enganos, assim via negada sua pastora”, “passando os dias na esperança de um só dia”, apenas “contentando-se com vê-la”...

Aliás, o trecho da Bíblia que conta o caso é igualmente belo e lírico; e sendo quer o soneto, quer a página do Gênesis, amplamente sugestivos, o conselho final que lhe dou, minha senhora, é que não ponha esse nome na sua filha, ou, se já o pôs, que a crisme por outro. Além da estrela de David e de outros males a menina ainda se arrisca a sofrer dessa forma singular de alucinação literária, doce e inofensiva, é verdade, mas sempre alucinação.

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