Tenho duas espécies de correspondentes em Portugal: de um lado os amigos, que nos dão sem regateio essa velha ternura portuguesa, que choram com a gente as suas mágoas e aceitam fraternalmente o nosso consolo e a nossa solidariedade. E do outro lado os que se zangam com a nossa interferência em seus problemas, sob duas alegações principais, primeiro: nós brasileiros — como os demais estrangeiros — não temos nada com a vida deles. Segundo isso que eles têm lá e que nós aqui chamamos de ditadura é ao contrário, uma espécie de Jardim de Éden, antes da serpente, onde, ao preço de algumas obediências e restrições, se goza de uma felicidade sem jaça.

De saída vamos protestar contra essa história de nos chamarem estrangeiros — de me chamarem estrangeira — o que eu, especialmente, ressinto. Em relação aos portugueses, posso ser estrangeira tecnicamente falando — mas francamente, nem parece coisa da generosidade portuguesa se apegarem a uma mesquinha tecnicalidade para me tomarem um direito que é meu, por sangue e nascimento. Estrangeiros nós, em Portugal? É como se nos fechassem a porta da casa materna. Onde estão as nossas raízes, de onde nasceu o Brasil, de onde nos vieram as palavras que usamos, os sentimentos do coração, as cantigas com que embalamos os filhos, as rezas e os santos da nossa devoção? Quem foram os nossos reis — seriam franceses, americanos os nossos reis, desde El-Rei d. Manuel até o Senhor d. João VI? E contudo, já neste século, ainda se derramou sangue no Brasil, por causa de um bando de fanáticos que, no seu sertão nordestino, estavam à espera da volta de d. Sebastião…

Se nos chamam de estrangeiros, então vocês, portugueses, também se consideram estrangeiros aqui dentro — e que estrangeiros serão esses que em cada um de nós se mira como num espelho de si mesmos, que em cada palmo da nossa terra encontram os padrões da sua grandeza, e em cada pedra ilustre do Brasil veem esculpidas as quinas de Portugal?

Zanguem-se conosco, zanguem-se comigo. Mas não nos neguem — porque somos “estrangeiros” — o direito de opinar, reclamar, aprovar, discordar, o supremo direito de nos doer por Portugal. Então, se o filho ficou homem e pôs casa nova, deixa de ser filho e é enjeitado?

Contudo sangue é sangue, e não será a palavra irritada de um parente que nos tirará das veias o nosso sangue comum.

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A outra alegação é que todos estamos cegos se não enxergamos que eles lá refizeram o jardim do paraíso antes do pecado; e que o nosso papel no caso é o da serpente, a aconselhar que se prove o fruto do Bem e do Mal — fruto esse que eles parecem identificar com a liberdade.

A resposta a essa queixa é igualmente simples: o velho Portugal, com mil anos de vida independente, já provou há muito desse fruto defeso, e não há arrocho de censura nem astúcias de demagogias que lhe façam esquecer o seu sabor. Com Afonso Henriques, há quase um milênio, Portugal começou a ser livre; por amor dessa liberdade correram rios de sangue português — e mais sangue correu ainda de mouro e castelhano, os inimigos tradicionais. Que loucura é essa — então, esqueceram que o velho Portugal foi o desbravador por terra e mar dos horizontes desconhecidos de América, Ásia e África? E agora querem transformar o varão ilustre em inexperiente donzela, e trancá-la na camarinha, e impedi-la de aprender a ler para que não troque bilhetes com o namorado! Portugal que já foi senhor do mundo, e que no mundo inteiro deixou a marca do seu pé, o nome dos seus heróis, querem agora encerrá-lo todo nos limites espirituais de Santa Comba Dão?

Ai, vocês se enganam se pensam que acreditamos que a voz de Portugal fala pela mofina boca do seu atual Ministério da Propaganda. Quando se quer ouvir Portugal, a gente lê os Lusíadas!

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 É próprio das ditaduras o se considerarem eternas, o suporem que, com o seu advento, se cria uma nova era, obliterando todo o passado, por mais glorioso. Mas felizmente isso são ilusões de grandeza. O passado não se esquece, o velho homem revive nos homens novos; a gente pode amordaçar a boca que quer falar, mas não cala a consciência por trás da boca. Impede-se o eleitor que vote, numa eleição que não era destinada a valer, mas não se impede o seu íntimo direito de escolha. Agora, por exemplo, essa “eleição”, em que foi sacrificado o bravo General Delgado, deve ter trazido aos homens do poder amargas constatações. Hão de ter visto quanto é precário o terreno onde assenta o seu palácio de mentiras. Que se mantêm ainda fortes porque se beneficiam de uma situação de fato — mas quanto tempo durará essa situação de fato? Eles próprios já desconfiam de que não se amordaça nem se manieta uma nação inteira, indefinidamente. Pode a solução demorar — dez, 20, 40 anos, o prazo da vida de um homem. Porém, morto esse homem — seja embora de extrema velhice — o país continuará vivo, Deus louvado!

Quando Portugal caiu sob o poder dos Felipes de Espanha, o mundo inteiro também pensou que estava sumida a nação portuguesa, transformada em província castelhana. Mas foram só 60 anos, prazo grande demais para a vida de uma geração, mas apenas um curto dia para um povo, que já conta a sua vida em milênio.

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Os meus patrícios de Portugal que perdoem a veemência. Mas veemência é coisa nossa, de cá e de lá. E se por lá, no momento, são poucas as vozes que se podem fazer ouvir, nós temos a obrigação de servir de voz aos mudos, de pena aos que não escrevem, até que a normalidade se restabeleça.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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