Ele não chegou "como um ladrão à noite" na frase da Escritura. Veio mesmo de dia e senão a ferro e a fogo, pelo menos entre ferro e fumaças de protóxido de azoto. Causou, a princípio, dor, apreensão, grande medo, e no fim muita alegria. Por que tanta alegria não sei, aliás. O espectador desinteressado dirá que o estranho, ao chegar, não era movido por nenhum fim altruístico e, se por acaso visa a algum bem, será unicamente o seu bem próprio. Dirá também o observador indiferente, que não é ele pessoa de tanta beleza que a sua simples presença já represente um sinal de bem-aventurança. Pois de cara é enrugado, de dentes é desprovido, de nariz não é nada clássico, de cabeleira terá mais uma lanugem do que cabelos propriamente ditos, de pernas é fino, de formas em geral não lembra nenhum Apolo, sem falar na ligeira tendência à macrocefalia que caracteriza todos da sua espécie.
É, além do mais, analfabeto, não fala a nossa língua e, aparentemente, não tem religião nem nenhuma espécie de código moral. Quanto ao temperamento, também não proporcionou nenhuma agradável surpresa aos que o receberam. Não tem o mínimo respeito pelas liberdades, quer privadas, quer coletivas. Grita em público ou em particular, à menor provocação, ou sem provocação nenhuma, por simples desfastio. Comete atos da mais afrontosa intimidade na presença de pessoas de maior prol. Defende os seus direitos e prerrogativas, ou o que considera como tais, com inflexível vigor; neguem-lhe à hora certa o alimento predileto, tentem impor-lhe banhos ou outras atividades desagradáveis, e articulará o seu protesto, aos gritos mais ferozes, ou em lamentações as mais desadoradas, sem consideração pelo possível tardio da hora ou pelo justificado alarma da vizinhança.
Falei que era egocêntrico. Realmente, será este o traço característico da sua personalidade. Até um sorriso, quando o faz, é para si mesmo. Justiça se lhe faça num ponto: parece ter uma tremenda vida interior.
Chegou nu, mas minutos depois já estava vestido nas mais finas cambraias e lãs. Sem ter ainda contribuído o mínimo para o progresso coletivo ou para a riqueza nacional, tinha, entretanto, uma porção de direitos assegurados por lei: casa, alimento, pensão – quem vê pensa que se trata de um benfeitor público! Sem falar nas propriedades, que já são dele, pequenas mas legítimas, e na posse, que diríamos ilegal, de dois autênticos escravos. Um que ele, literal e desapiedadamente, suga, o outro que malmena de todas as maneiras e que se pode dizer também, ao pé da letra, trata aos pontapés. Acorda-os ambos às altas horas da noite, para que lhe satisfaçam as exigências mais absurdas, não lhes respeita hora de refeição nem de trabalho, nem de visitas, domingos nem feriados. A retribuição que dá a tudo isso é a sua simples e impertinente presença que – fato admirável – os dois recebem com requintes de alegria e gratidão.
Tem ainda um avô e um padrinho, que, embora manifestem justificado orgulho pela aquisição de tal príncipe, não conseguem esconder um relativo receio de muita aproximação física com o dito. Talvez, conhecendo-lhe a contumaz irreverência, tenham medo de algum atentado mais grave à sua dignidade parental.
A sorte o privou das avós, mas procurou compensá-lo, embora fracamente, dando-lhe uma avó torta que, se não tem as virtudes das que estão no céu, sofre em grau agudo do mesmo enternecido deslumbramento e apaixonada cegueira que, provavelmente, caracterizariam as autênticas: e, no pequeno animalzinho egoísta, só enxerga um ente de beleza helênica e de extraordinários dotes de inteligência e moral.
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Chama-se Flávio o pequenino estranho, e nasceu de cesariana. Está exatamente com 22 dias de idade e, nesse pouco tempo de vida, tem conseguido absorver e ocupar totalmente uma família inteira. Como pessoa dessa família ou, mais exatamente, sendo eu aquela deslumbrada avó torta acima referida, sei que alguns podem dizer que o meu depoimento é suspeito. E contudo declaro, com toda humildade e com sinceridade absoluta, este fato realmente espantoso:
Como pode nascer de uma família média brasileira, sem nada de excepcional, sem gênios nem príncipes no seu seio, apenas honestas pessoas tementes da lei, amantes do trabalho e respeitosas do catecismo moral e cívico, como é que nesta família, afinal de contas, nem melhor nem pior do que a maioria das famílias, pode nascer um meninozinho tão lindo, tão extraordinário, tão maravilhosamente talentoso, belo, excepcional?