Este mundo anda tão reverso que, hoje em dia, quando evocamos uma cena — digamos de Mil e uma noites — não a temos presente tal como vem sendo lida há quase duzentos anos na tradução clássica do Galland, mas como a recebemos de Hollywood, — Arabian Nights, falada em inglês, de terceira mão e em tecnicolor: é a tirania da técnica sobre a cultura.

O fato é que ao evocarmos a cena do príncipe que encontra a velha garrafa, abre-a imprudentemente, deixando escapar-se uma fumaça misteriosa que cresce, assobia e acaba se resolvendo na figura de um gênio, — o que vemos é a cara simpática daquele ator negro Rex não sei de que, que se libra no ar da liberdade, enche a tela inteira, encara o mundo e grita três vezes: “Free! free! free!” — Livre, livre, livre!

Mas, de Hollywood ou de Galland, a figura do gênio engarrafado agora a sentimos atualíssima. Free! Free! Porque se aqui o embotelhamento não durou séculos, parece que durou. E quando deu a meia-noite que marcou o fim do carnaval e rompeu o véu do sítio, a vontade que dava era mandar parar a orquestra dos sambas, tocar o hino nacional e soltar, feito o gênio, o grito da independência.

*

Sim, acabou já que tudo no mundo tem fim, até o retorno.

Diziam os partidários do sítio que se tratava de medida suavíssima, que a população não se apercebia de que estávamos vivendo um período excepcional. E sorrindo, misteriosos, davam a entender que se tratava apenas de um acordo entre cavalheiros — um gentleman's agreement, destinado unicamente a impedir que os veneráveis juízes do Supremo pusessem a mão no abacaxi. Juiz é bicho doido: ninguém nunca pode garantir com antecedência que eles entrem na combinação.

Também nos tempos do Estado Novo eles diziam que se tratava de uma ditadura dulcíssima: verdadeiro felinto-mel.

Claro que é isso que eles dizem. Mas suavíssimo ou não suavíssimo, o fato concreto é que o bicho estava aí, de dente e chifres, com todas as suas potencialidades e perigos, fossem estas ou não aproveitadas, dependendo unicamente do arbítrio de um grupo de pessoas. E não dava aflição a vocês, pensarem que estavam vivendo em paz, mas de favor, porque o homem, só de bonzinho, não mandava prender nem deportar, nem lhe arrancar da cama de noite? Se quisesse podia, mas graças a Deus ele tem bom coração! E que você não poderia sequer conversar no seu telefone sem haver um sujeito de lado que se quisesse escutar escutava e até gravava a conversa, se lhe desse na telha? E que as suas cartas também estavam à mercê do leitor policial? E que o seu jornal, censurado, não lhe merecia mais crédito, pois era obrigado a contar mentiras e a calar verdades, de acordo com a opinião do censor? Não precisava mais nada — não lhe bastava, para o engulho, imaginar entre você e o seu jornal metido esse intruso, esse indesejável, essa odienta figura que se chama O Censor?

Não, não venham falar em sítio bonzinho. Não há sítio bonzinho, como não há cadeia boa. Só pelo fato de ser sítio, já é péssimo.

*

Agora acabou. Não heroicamente, bravamente, belamente: esgarçou-se, desmoralizou-se, sumiu. Os próprios que o inventaram aos poucos se foram envergonhando, foram lhe negando o apoio, renegando o monstrengo, que por falta de escoras afinal caiu e estourou. Que virá atrás dele? Bem, entrega-se a Deus. Deus dá o frio conforme a roupa, mete o pau conforme a falta — e aqui falta tudo...

Aos trancos e barrancos iremos indo. Também o ditado diz que “ao menino e ao borracho, põe-lhe Deus a mão por baixo”. E se já não somos tão jovens que aos olhos do Senhor possamos passar por um trôpego infante, temos muito do marinheiro bêbedo, a rasgar os dólares que não possui com as Coca-Colas da praça Mauá.

Ele que nos ampare com a Sua mão e nos arranque aos perigos do porto e nos leve de novo à solidão fecunda do mar alto.

À solidão e à liberdade. Porque com a corda no pescoço, mesmo que o cabresto esteja frouxo, nenhum homem livre concorda em viver.

rachel-de-queiroz
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