Já faz dois anos que foi lançado o primeiro satélite artificial, o Sputnik nº 1. E ainda está muito perto de nós a emoção com que todos olhávamos para o céu, tentando descobrir o risco fugitivo de luz que seria o rastro do prodígio, visível a olho nu; e o misto de terror e orgulho com que, embora sem a avistar, se pensava naquela pequena coisa de metal e plástico — o baby moon, o filhote de lua, a invadir o espaço inviolado, a se pôr a girar em volta da Terra, emitindo o seu petulante blim-blimp. Com ele começou o extraordinário duelo — sputniks de um lado, explorers e atlas, do outro. Quase toda semana tinha-se notícia de um — aquele frustrado, que seria o primeiro foguete à lua, mas lá não chegou. Ou aquele outro satélite americano que nos mandava para além da ionosfera a voz cardíaca do velho Ike. Depois foi o drama da cachorrinha Laika e as pulsações do seu pequeno coração que, durante oito dias, foram captadas aqui embaixo, e depois a ideia do seu cadáver, na cápsula prateada, a rodar, a rodar naquela órbita fixa, como um condenado do inferno, coitadinha. Laika — cujo verdadeiro nome era Damka, e cuja figura guardei como a de um conhecido antigo, depois que lhe vi o retrato, toda vestida nos seus arreios siderais — foto trazida pelo nosso grande repórter Luciano Carneiro, quando voltou de uma viagem à URSS. Aliás, para evocarmos propriamente esses miraculosos foguetes teleguiados de hoje em dia, temos que retroceder aos últimos meses da II Grande Guerra, aquelas infernais V-2 que aterrorizavam Londres e até aqui mesmo nos aterravam, cegos demônios de destino fixo, capazes de atravessar sozinhos mar e terra, em procura do objetivo certo. Esses luniks de agora, que deram para explodir na face da lua, creio que são, salvo erro, descendentes aperfeiçoados da V-2.

Pois é, tudo isso está acontecendo, e — aí é que chega o meu ponto, — essas maravilhas continuadas, em vez de nos exaurirem de assombro e orgulho, até chegarmos a um ponto intolerável de tensão — essas maravilhas acostumam, ou mesmo fatigam o interesse humano. Os primeiros satélites ganhavam não só manchetes histéricas, mas edições extras dos jornais, emissões especiais das estações de rádio e televisão. Já os de agora, a menos que não levem consigo alguma novidade cem por cento — recebem umas poucas linhas em terceira ou quarta página e, no noticiário radiofônico, aparecem entre despachos do exterior, junto com a última paixão de Soraia e um discurso do General De Gaulle.

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Será por acaso essa indiferença fingida — no fundo nós estaremos mesmo é fazendo como o povo do Iguatu?

O Iguatu, como vocês sabem, é uma brava e ilustre cidade do sertão do Ceará. O povo do Iguatu é gente altiva, detesta ser tomado por bobo, ou pior ainda, por matuto. Aliás todos os sertanejos somos assim; sertanejo não “se admira” de nada, por princípio, por compostura. Traga um aqui ao Rio, mostre-lhe os prédios de trinta andares, os túneis, o rush de automóveis, à boca da noite, televisão, girls do Carlos Machado — ele lhe dirá apenas, polidamente, mas sem entusiasmo, que acha tudo “bonitinho”. Por isso, há uns vinte ou mais anos atrás, quando no céu cearense começaram a cruzar os aviões do correio aéreo, o povo do Iguatu resolveu não dar bola; se acaso passava avião por cima da rua, todo mundo timbrava em olhar para o outro lado, na mais completa indiferença. Mas, certo domingo, pela manhã, justamente na saída da missa, com a praça cheia de gente, veio vindo em voo baixo uma esquadrilha completa. O povo, firme, não espiava; foi então que um garotinho não se conteve, o zumbido dos bichos no céu era um imã, — e ele virou-se todo, em contemplação.

A mãe, porém, vexadíssima, o puxou por um braço:

— Deixa de bestidade, menino! Baixa essa cabeça! O povo te vendo assim é capaz de pensar que tu nunca na vida viu um aeroplano!

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Não, não creio que a gente esteja deliberadamente procedendo como o meu bravo povo do Iguatu. Tanto que nos começos dos satélites, segundo já foi dito, a admiração era grande. Mas inconscientemente nos retraímos agora — em sinal de defesa, quem sabe. Não vê que o povo do Iguatu, na sua sabedoria natural, compreendeu de saída que a gente não pode viver permanentemente sob tensão, e que a melhor solução é tornar o inverossímil em rotina, senão a vida fica impossível. A capacidade de nós todos tem um tamanho determinado e, se levada a uma pressão excessiva, pode explodir como uma caldeira. Para evitar esse desastre é que funciona o nosso maquinismo de defesa — e a gente, em vez de explodir, acostuma.

Aliás isso já vem de longe, desde o começo do mundo. A própria natureza é que nos vem treinando e, desde que na terra nasceu o primeiro homem, tratou de acostumar, sem assombros, aos mais estupendos milagres. Não houve ainda sábio soviético ou americano capaz de inventar nada que se assemelhe aos mais modestos prodígios naturais: um arco-íris, um crescer de maré, — que digo? — o simples desabrochar de uma rosa. Isso sem falar nos milagres mais estupendos, como o cotidiano nascer e pôr do sol. Mas a gente assiste manhã e noite a esses extraordinários acontecimentos e não lhes atira mais que um olhar distraído. Sol e lua e mar e estrelas e plantas e bichos e rios e vulcões, tudo é o nosso pão de cada dia, tudo é rotina. Assim também serão sputniks e explorers, e luniks, e o mais que venha.

E parece que já estou vendo o dia — dentro de um mês, dentro de um ano, como diz a Sagan — ou dentro de cinco, dez anos, a gente ir entrando no bar com o marido, e de repente ele nos segurar o braço, recuar para a calçada:

— Meu bem, vamos procurar outro botequim. Estão aí dentro os chatos daqueles marcianos, já de cara cheia. Se há coisa que eu detesto, é marciano bêbedo!

rachel-de-queiroz
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