Todo o mundo já disse que ele tem cara de menino, e é verdade. Iuri Gagarin é um meninão simpático, baixo, forte, louro, sorridente. Parece mesmo que sorri porque gosta, e não por dever diplomático. Sabe-se que foi escolhido a dedo, entre milhares de candidatos, para o primeiro voo espacial. E penso comigo que, entre as qualidades que lhe garantiram a eleição, além das demais habilitações corpóreas e psíquicas que o classificavam para a tremenda empresa, há de ter pesado no critério de seleção justamente esse seu físico de gala juvenil, modelo dos padrões oficiais do “herói soviético”, segundo o conhecemos pelas fitas de cinema que nos vêm da URSS: rijo, são, olhar franco, riso claro, ar entre o idealista e o ingênuo. E casado, e pai de dois filhos, e antigo operário — o rapaz está mais dentro das medidas ideais do que uma miss universo!

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Já bastante antipáticos são os seus guarda-costas. As pessoas que planejaram a viagem triunfal do cosmonauta através do mundo não deram, aparentemente, a devida importância a esse detalhe essencial, que é a comitiva do viajante. Ou então havia um propósito escondido e, assim, foram deliberadamente escolhidos os cães de guarda — também de tipo padronizado pelo cinema e pelas histórias de quadrinhos: cara ruim, olho-de-com-fome, ar de vigilância prevenida, palavras poucas e na ponta do beiço. Podiam trabalhar de vilão em qualquer filme policial, que já têm a cara do ofício. No simples passeio pelo gramado do parque, enquadram o jovem Iuri como um prisioneiro, em formação militar. Não dão bem a impressão de que protegem; dão mais a impressão de que seguram. E tal é o contraste entre o herói de sorriso tímido e os seus mal-encarados leões-de-chácara, que o primeiro impulso da gente por ele é uma certa piedade — coitado do mocinho entre os tiras, com pouco mais autonomia do que um boneco de ventríloquo.

Fazem constar os guardiões que Iuri não fala outra língua além do seu russo nativo. Mas, segundo murmuram os repórteres, e essa versão é mais plausível — Gagarin, como todo jovem russo de curso universitário, provavelmente entende e fala o inglês ou o alemão — ou ambos. Mas, ou porque não convenha à majestade convencional do herói trocar conversa diretamente com ninguém; ou porque os cornacas do astronauta tenham medo de que ele diga o que não deve, emparedam Iuri na proibição de abrir a boca, como aqueles potentados orientais a quem a etiqueta obriga a fingir que não entendem o que lhes diz o estrangeiro, para não macularem os lábios com idiomas alienígenas.

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A primeira vez em que vi uma telefoto com o retrato de Iuri Gagarin logo depois do voo espacial, senti, como o devem ter sentido todos, aquele misto de respeito e alvoroço —, ante a imagem do homem que realizara a inconcebível aventura. Estávamos no sertão, longe da civilização e suas pompas, e a distância ainda parecia maior, dada a simplicidade bíblica do nosso cotidiano e a demoníaca complexidade da façanha da ciência soviética. E escutando a minha velha comadre que se assombrava: “Como é que eles não tinham medo de ir no céu, bulir com os santos!”, a gente também sentia um assombro meio incrédulo, e a foto diluída do herói parecia-nos de um ser diferente, tocado por não sei que mistério cósmico, e de certo modo excluído das implicações da condição humana.

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E agora ele está aqui, a dois metros de distância, o mesmo lendário Iuri Gagarin que varou o espaço sideral. Pisando a grama do nosso amigo Drault, recebendo no rosto corado a brisa fria que varre a montanha. Só se distingue das demais pessoas porque a gente sabe que é ele. Olho a simpática e juvenil figura no seu terno de tropical azul, e fico pensando como é precária a imaginação do homem moderno quando trata de festejar os seus heróis. No peito, Iuri Gagarin ostenta as mais altas condecorações soviéticas: três simples estrelinhas de ouro penduradas cada uma na sua fita. Meu Deus, por que esta nossa paixão pelo medíocre, e pelo fosco; por que esse medo que temos da ênfase e do aparato? Por que não apresentar Gagarin como o nosso coração o vê, a nossa imaginação exaltada o idealiza — não o rapaz comum de jaquetão e gravata, mas numa farda de astronauta folheado a ouro, o diamante Koh-i-Noor como condecoração, pedras preciosas nas sandálias, manto estrelado de poeira cósmica, a passear de pé, feito um semideus, num grande carro luminoso, por entre as multidões em delírio....

Ah, que falta faz um romano, para nos ensinar como é que se deve montar um bom “triunfo”.

rachel-de-queiroz
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