Todo mundo gosta de ser profeta. E hoje, remexendo em velhos recortes, encontrei uma crônica escrita na euforia da posse do meu primeiro jipe, onde cantava as excelências desse carro revolucionário e lhe previa o futuro brilhante que tem hoje no Brasil. Verdade que não previ o jipe brasileiro; naquele tempo (1947) a indústria nacional de automóveis ainda estava no domínio da ficção científica, junto com o fim de semana na lua e o turismo interplanetário...

E perdoem-me se resolvo exumar aqui o artiguete: faço-o como pequena homenagem ao Salão Nacional do Automóvel, que ora se realiza em São Paulo e onde o jipe tem um lugar de honra. (Em tempo, faço a ressalva de que a homenagem é gratuita — isto é, que ao fazê-la não passei pela caixinha de ninguém...). Mas vamos à transcrição:

“Olhando-se para ele sem cuidado, parece um automovinho de brinquedo. Mais de perto, sugere uma cruza entre caminhão e baratinha. Examinando-se bem, então não se descobre o que é. O para-choques dianteiro é feito um limpa-trilhos de locomotiva; o traseiro tem um engate de trator, e o motor, aparentemente insignificante, ronca e puxa como um tanque de guerra. As rodinhas finas sobem em qualquer parte e aguentam qualquer peso. E verifica-se afinal que toda aquela fragilidade é aparente, que um jipe assim pernalta e de lataria chocalhante é na verdade uma maquininha rija e heroína, mal comparando é feito aqueles cabeças-chatas amarelos, miudinhos, quase sem apresentação de homem e que, entretanto, foram os únicos brasileiros capazes de enfrentar o Amazonas e que já se atreveram a uma aventura imperialista — a do Acre — e ganhando-a, note-se bem”.

“Dizem que os jipes modernos já estão ficando sofisticados, em comparação com os ásperos precursores do tempo da guerra. Nestes de agora já não chove por dentro, já o assento é de estofo em vez de uma simples lona esticada por cima do ferro etc. etc. Mas não são estes confortos medíocres o atrativo do jipe: o que ele nos proporciona de especial e raro é uma sensação de leveza e liberdade. Talvez tenha sido por causa do jipe que os americanos venceram a guerra. Parece que dentro dele a gente fica atuado por um espírito de irresponsabilidade e confiança, uma como certeza de impunidade, um corpo fechado aos riscos — estado de alma que já é uma meia vitória para quem vai guerrear”.

“Em comparação, veja-se um automóvel de luxo: uma espécie de coisa emoliente, almofadada, envidraçada. Mesmo correndo a altas velocidades, procura dar a impressão de que mal se move: o fabricante dele se dará por bem pago se conseguir fazê-lo correr sem parecer que corre. É uma máquina de decadência e representa para a nossa civilização o mesmo papel corruptor da liteira amontoada de coxins onde os últimos romanos se transportavam, ou a cadeirinha dourada dos marqueses de Maria Antonieta”.

“O jipe, ao contrário, é viril, espartano, revolucionário. Representa uma reação de saúde, bravura e limpeza contra o que há de enxundioso e sibarítico nesta última fase do capitalismo”.

“No Brasil, então, será o jipe principalmente uma reação do bom senso, do espírito de economia e equilíbrio contra essa louca paixão de desperdício que nos foi inoculada pela civilização americana. Em verdade, haverá disparate mais gritante e perdulariedade mais rastaquera do que atirar por este país adentro, na selvageria da serra ou do sertão; aquelas máquinas super-deluxe, a reluzir no cromo e nos vernizes, capitonadas de veludo, com molas tão macias que parecem feitas de fios d’ovos, a pedir posto de socorro de dez em dez quilômetros? Ver um elefante branco desses, que custa mais caro do que uma casa, ser entregue às intempéries, aos atoleiros, aos buracos e pedregulhos das nossas supostas estradas”?

“Pois nessas estradas quem está no seu elemento é o jipe. Não destoa nem da paisagem nem dos seus habitantes. Fica muito bem junto de um rancho de taipa e lhe assenta otimamente como motorista um caboclo com alpercata de rabicho. Não tem luxos nem bonitezas, é magro e sem vaidade como nós. Outro dia, numa estrada ruim, numa extrema entre o DF e o estado do Rio, encontrei um motorista de jipe de conversa com um carregador de capim. Ia cada na sua montaria, o chauffeur do jipe de capota arriada, o outro homem escanchado na burra, no meio da carga verde, passo a passo, vagarosamente, com o olho no caminho e o ouvido na palestra, desviando de buraco, afastando a cabeça dos galhos baixos; quando o cavaleiro esporeava a burra, o motorista mexia numa manivela, mas não alteravam grandemente a andadura, nem a estrada grossa de lama o permitiria. E nada tinham de contrastante os dois assim juntos e amigos, se ajustavam como duas coisas parelhas, eram a bem dizer a mão e a luva”...

*

De lá para cá fez o jipe uma longa carreira; é justo, pois, que a esse vitorioso da caatinga, esse novo bandeirante do nosso oeste que se desbrava, a gente entregue um modesto buquê de palavras — palavras que gostariam de ser flores.

rachel-de-queiroz
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