26 abr 1947

O mundo tão belo, o céu tão perto

E choveu e passou a noite, e depois da noite chegou a manhã com o sol enxugando a terra. Ah, o mundo tão belo, o céu tão azul e tão perto. Um pretinho friorento aquenta ao sol, deitado num monte de terra, junto com quatro cachorros. As galinhas ciscam energicamente o capim da rua e a lavadeira passa, majestosa com a trouxa à cabeça, lenta e carregada como um dromedário. Vem o português com o carrinho das verduras; e vem o outro português com o cesto das garrafas. Ambos apregoam “verdureiro”, “garrafeiro”, dizendo “Várdureiro!” e “Guerrafeiro!” em vogais abertas e alegres.

Esmeralda sai de casa em caminho do emprego, Esmeralda fugida diretamente do poema, com os cabelos crespos presos na rede floco de veludo azul, a saia cor de cinza chanfrada na curva da perna, o sapato balé lhe fazendo pulseira no tornozelo.

Três garotas de saia azul vão para a escola, e todas três têm trancinhas e laçarotes. Cruzam se rindo com o peixeiro, que empurra preguiçoso o carrinho de mão, carregado de dois cestos cobertos com ramos verdes.

E lá longe aponta o bonde, gingando em cada curva, gemendo e chorando nos trilhos, feito um bêbedo.

O soldado que esperava na esquina segura o braço de Esmeralda e lá se vão os dois bem juntos para o poste do bonde, brigando baixinho. Bela manhã de abril para se brigar de amor, debaixo do sol morno, esperando o bonde. Esmeralda e o seu soldado sentem isso, lançam em torno de si um olhar de quem toma posse da manhã de sol, e retornam aos cochichos e aos muxoxos.

Na casa pegada à igreja morreu um anjo e na sala toda aberta como para uma festa entram grupos de meninas de vestido branco carregando buquês de flores pobres ― hibiscos, zínias, jasmins de São José e rosas de cacho. Da rua se avista o caixãozinho branco e dourado por sobre a mesinha de centro; os passageiros do bonde centenas de vezes já viram aquela mesa amarela envernizada e só a estranham agora porque dantes ela tinha em cima um enfeite diferente em lugar do caixão minúsculo: nos dias comuns põe-se ali um elefante de gesso, com a tromba erguida para o ar. Por sinal que o menino morto, que agora é anjo, enquanto viveu sua curta vidinha sempre alimentou um desejo enorme de agarrar aquele elefante e nunca ninguém lho consentiu. Vê-se que agora desistiu desse desejo para sempre. No sofá está a mãe de vestido cor de rosa, conversando com outras mães e a toda hora chegando o lenço aos olhos vermelhos.

O bondinho deu um suspiro alto no freio de ar, parou, e Esmeralda subiu. Mas o seu soldado ficou em terra, olhando amuado para o mar. Sim, porque na glória daquela manhã terrena tínhamos esquecido o mar, plácido mar de fundo da baía, limoso e sem ondas. O soldado de Esmeralda olhava o mar, portanto, e quisera ter outro mar diante dos olhos, estrebuchando em rebentação e espumas, não aquilo, aquela água parada de lagoa.

No banco do bonde o senhor gordo que se acomodara ao lado de Esmeralda abriu o seu jornal. E leu que a fome e a opressão assolavam a Europa. Que a guerra devastava a China. Que a bomba atômica fizera gerar crianças monstruosas no ventre das mulheres japonesas. Que guerra civil incendiava o Paraguai, que as discórdias e as greves abalavam a América....

Então o homem gordo refestelou-se mais; como ele era pesado e o banco frágil, o encosto gemeu um pouco, e Esmeralda empertigou-se, pensando que aquele sujeito queria tomar confiança. O senhor gordo não notou nada, felizmente. Da manhã clara, do céu azul, da pulcra Esmeralda, ele nada via nem vira. Gozava em paz o seu fim de mundo, após o café.

rachel-de-queiroz
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