Creio que é muito rara a pessoa neste mundo que não pensou alguma vez em escrever a própria biografia. Toda criatura tem as suas aventuras inéditas, os seus episódios surpreendentes na vida e sente a mágoa intima de ver tanto material de primeira classe ir para o nada, inédito, ignorado.
Não há romancista profissional que não viva sendo interpelado por conhecidos e quase desconhecidos, que lhe murmuram numa conversa de bonde, num sofá com um coquetel na mão, num botequim entre dois chopes, num velório de amigo ou em outro qualquer lugar medianamente propício a confidências: “Ah, se eu lhe contasse a minha história, você tinha material para mais de um romance”!
E não há decerto nessas declarações tanta pretensão risível quanto são levadas a crer as vítimas dos eternos candidatos à biografia. A vida humana tem na verdade muito movimento, muito inesperado e muito clímax. Todo mundo, quando começa a viver, constrói os seus planos dentro de um esquema de ventura e estabilidade, todo mundo espera encontrar durante a vida não só o amor, como o poder e o dinheiro ― esse complexo de circunstâncias, sensações e emoções chamado felicidade. E à medida que vai vivendo, quase só encontra desenganos, miséria, humilhação, desgosto. Basta esse choque, esse desencontro de projetos com realidade, para por si só representar uma desventura, um mau sucesso imprevisto. Paralelamente, cada sucesso que ocorre a um ente humano sofre o que se pode chamar a “interpretação” do interessado, e seja embora o acontecimento mais comum ― orfandade, viuvez, traição ou amor ― assume uma fisionomia própria em relação a cada indivíduo em cuja vida interfere, dando motivo a que cada vivente da terra goze ou sofra o que ele supõe ser um caso peculiar, único. Assim peculiar e único se sente o homem que escapou milagrosamente de um desastre de avião, a grande dama que começou a vida como manicura, a mocinha cujo namorado se suicidou por culpa dos seus desdéns, a solteirona oficialmente imaculada e donzela, mas que esconde consigo um segredo de amor culposo e clandestino. Toda essa gente que vemos andar cuidando da sua vida na rua, que senta conosco no mesmo banco da igreja, ou do ônibus, a caixeira que nos vende o pó de arroz, o vagalume que nos mostra o lugar no cinema, o gari, o padeiro, o advogado, o senador, todos pedem livro, romance, biografia; ― e o curioso é que todos estão mais ou menos credenciados para protagonistas de novela; histórias ― a falta que faz é quem as conte, não quem as sofra.
Quem duvide, pegue da sua vida, pense em qualquer episódio, no primeiro amor e no primeiro desengano, retire do armário do sótão os esqueletos de família, os escândalos, as desgraças, os triunfos, imagine aquilo posto em boa prosa, tratado com boa técnica, que livro não daria! Desafio o leitor que seja capaz de declarar sua vida um vácuo absoluto de qualquer tema novelesco. Desafio, e como prêmio da aposta me comprometo a escrever sua história que só por essa circunstância excepcionalíssima, há de ser das mais absorventes. A aposta só não vale mesmo se o leitor for cego, surdo e mudo. E, pensando bem, nem assim. Vale tudo, de qualquer maneira; porque me lembrei daquela Helena Keller, que era muda, surda e cega e deixou uma bibliografia imensa, composta inteiramente de livros escritos a respeito dela própria e de suas aventuras.