Nem parecem olhos de brasileiros aqueles olhos azuis com que nos fitam as gentes de certas zonas do Sul: tão claros, tão arianos, brigando muitas vezes com a pinta de sangue negro que o seu dono já possa ter de mistura e que se revela no cabelo ou na feição mulata; ou, quando o tipo branco permanece fixo, brigando com a fala mansa de caipira, com o descanso, a gentileza, o pé no chão, e outras características tão nitidamente nacionais.
Isso, porém, se registra em alguns casos, em algumas regiões. Há outras em que os olhos estrangeiros combinam com tudo o mais do indivíduo, e de brasileira aquela gente não tem nada, só mesmo o direito que a constituição lhe dá de brasileiros se chamarem, porque aqui nasceram — naturalmente não por seu gosto.
Quem anda pela chamada “zona alemã” dos estados do Sul, e especialmente pelo vale do Itajaí, em Santa Catarina, a sensação que tem é de estar em país estrangeiro, e país estrangeiro inamistoso. E essa sensação nos é transmitida não só pela cor do cabelo e dos olhos dos habitantes, não só pelos nomes que se ostentam nas placas das lojas e dos consultórios, não só pelo estilo arquitetônico; é, antes e acima de tudo, pela fala daquela gente. O brasileiro do vale do Itajaí quando fala a língua nacional, fala-a como um estrangeiro. Fala-a como a falaria qualquer alemão com poucos anos de Brasil, e em certos casos nem assim a sabe falar. Fala mal, com sintaxe germânica, com uma pavorosa pronúncia germânica, e fala-a principalmente com um desinteresse, um descaso tal como devem falar os ingleses coloniais o dialeto dos cafres; pouco e péssimo, apenas o suficiente para se fazerem entendidos pelos nativos nas suas transações obrigatórias.
Isto, a língua, é o obstáculo principal. Mas sente-se que existe, além da língua, um outro obstáculo mais sutil a separar brasileiros e teuto-brasileiros no vale do Itajaí. Seria forte chamar desprezo o que eles sentem pelos habitantes do resto do Brasil — mas o diabo é que não encontro outra palavra mais amena. É, entretanto, um desprezo disfarçado, uma espécie de desprezo atencioso, porque, depois do trabalho chamado de “nacionalização do vale do Itajaí”, e mormente depois da guerra e da derrota nazista, os alemães dali já não se atrevem a assumir abertamente a sua antiga atitude de super-homens. A impressão que se tem é que eles se encolhem, mas ainda rosnam. São obsequiosos, corteses, talvez até solícitos. Se conversam em alemão num grupo de rua e lhes passa por perto um ostensivo brasileiro de pele morena, eles mudam de língua enquanto o brasileiro passa e trocam qualquer palavra em português. Porém, mal o brasileiro se afasta dez passos, logo eles juntam as cabeças e tornam a engrolar conspirativamente na sua língua de gringo.
O grosso deles vive naturalmente nas cidades de Joinville, Blumenau, Pomerode (que o governo tentou inutilmente crismar para Rio do Testo), Brusque. De Brusque para lá acham que fica a fronteira da sua nação: sentimento esse que foi muito bem traduzido pelo dono da principal confeitaria de Brusque, um alemão mal-encarado, que não sei se nasceu aqui, mas que em todo caso fala um português infame, e que nos declarou textualmente: “Se os senhores querem conhecer Santa Catarina, podem ir embora daqui. O resto, Itajaí, Florianópolis, só tem sujeira”.
Se há, pois, quisto racial ainda em plena exuberância é aquele. Aquilo não é Brasil, ou se o é, é Brasil transviado, Brasil em mãos alheias. Vivem os seus habitantes como se fora em terras da Europa, e o pouco amor que reina entre as cidades nacionais e alemãs é evidente e alarmante. Do lado dos alemães eles não se atrevem a falar à gente com tanta franqueza, mas os catarinenses, especialmente os de Itajaí e Florianópolis, não escondem o seu rancor por aqueles a quem chamam de “galegos”. Vivem os nacionais para um lado, vivem os alemães para o outro, quase tão separados quanto negros e brancos nos Estados Unidos. Até praias os alemães têm separadas: que o digam as lindas areias de Cabeçudas ou Camboriú onde, se não fosse o sol brasileiro, a gente pensaria estar às margens do mar do Norte.
Alguém tem que dar um jeito nesse problema, enquanto ele não se vira em drama. A fórmula da solução é, entretanto, difícil e, pelo menos até agora, parece que ainda não foi encontrada. E enquanto espera o jeito, as crianças que nascem no vale do Itajaí continuam aprendendo o alemão como língua pátria, se batizando em alemão, lendo em alemão, pensando em alemão, vivendo e morrendo em alemão.