O homem da idade média chamava aos leprosos “gafos” e lhes punha um chocalho ao pescoço, para que de longe a sua aproximação se anunciasse e os sãos pudessem fugir. E ainda hoje todos nós temos medo até da palavra “lepra” e usamos metáforas para a traduzir; e se já não pomos um chocalho ao pescoço dos nossos lázaros é porque dispomos de meios mais eficazes para os isolar.
Sendo tão grande, o terror da moléstia, acontece que esse terror se estende marcando mais de uma geração, e o filho de leproso, leproso seria, arrastando consigo a maldição que lhe ferira os pais. Maldição injusta, afinal de contas, porque no dizer de quem entende, a lepra não se transmite por hereditariedade: como qualquer outra doença contagiosa, o mal de Hansen pega, e só por culpa da convivência doméstica pode o filho apanhar a moléstia dos pais. Isolando-se desde o dia do nascimento a criança filha de pais enfermos, terá ela as mesmas probabilidades de saúde do que qualquer um de nós.
Sabendo disso, e condoídos do destino de milhares de crianças descendentes de lázaros e marcadas do berço pela terrível praga, um grupo de senhoras e de médicos, tendo à frente a personalidade dinâmica da sra. Eunice Weaver, criou pelo Brasil inteiro uma cadeia de instituições de caráter privado, destinadas a dar assistência aos filhos de leprosos. Não se tratam de asilos, contudo. Aparentemente, são simples colégios: mas não se pode dizer também que são simples colégios porque a residência da criança ali tem um aspecto mais forte de permanência, um jeito de quem “vive”, que torna a instituição mais semelhante a um lar do que a um mero estabelecimento de educação.
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Fui convidada a visitar o preventório de filhos de hansenianos do Ceará, o qual se chama simplesmente “Educandário Eunice Weaver”. É um grande sítio perto de Maracanaú, na estrada de Maranguape; tem roçados, açude, pastagem, curral, aviário, pomar. O ar dali é fino e seco, o sol tão claro que, parece só eles seriam capazes de curar qualquer doença. Na encosta que domina o açude se agrupam os pavilhões do educandário, tudo singelo, limpo, bem instalado, cercado de flores e trepadeiras.
Recebem-se na casa crianças de dois tipos de procedência: as que, embora nascidas de pais enfermos, não tiveram contato com eles (costuma-se hoje afastar o filho da mãe doente na própria hora em que nasce); e as que conviveram com pai ou mãe atacado do mal (em geral na promiscuidade de uma casa de pobre, pois a lepra é doença de miséria). As primeiras são recebidas como pessoas de saúde normal, que em verdade o são. As segundas ficam em observação num recinto de isolamento, durante um determinado período de tempo, sujeitas a rigoroso controle médico; decorrido o prazo considerado como de incubação da moléstia, as crianças que se revelarem enfermas vão para os hospitais de hansenianos e as que provaram sadias são libertas de isolamentos e reunidas às demais pensionistas da instituição.
Entram ali de recém-nascidos a adolescentes, de modo que há instalações para todas as idades, — berçários como de maternidade, e alegres dormitórios de moças com balcões floridos e babados de chintz nas janelas e nas camas. Vi toda a meninada no recreio (era feriado, Sete de Setembro) brincando descalça, cantando roda num grande alpendre, à vontade, sem uniforme, bem-humoradas como jamais supus o pudessem ser órfãos em qualquer espécie de asilo. Cantam espontaneamente para a visita ouvir, sem timidez, sem constrangimento; fazem perguntas, mandam recados, mostram as coisas da casa. Em tudo crianças normais e felizes, sem sombra dos terríveis complexos que seria de esperar as molestassem.
No educandário estudam as primeiras letras. O curso secundário, fazem-no nos estabelecimentos públicos da cidade, pois o plano da instituição não é segregar as crianças, mas devolvê-las ao convívio normal das demais pessoas. Saem de manhã no ônibus para os cursos, ou se internam nas escolas rurais; diplomam-se e tornam-se agrônomos, professores, bacharéis em letras. Também há os que querem ser operários e praticam nas próprias oficinas do educandário, ou em oficinas mais especializadas lá fora. Muitas das moças casam-se na própria instituição, por sinal vi perto do sítio um bangalô branco de portas azuis que é o lar feliz de uma das internas da casa, casada com um moço dos arredores.
Como disse acima, esses preventórios para filhos de lázaro são, no Brasil inteiro, instituições de iniciativa e manutenção privada. Fora o pequeno núcleo profissional de funcionários, todos os serviços a elas prestados são gratuitos e, contudo, não lhes faltam médicos, dentistas, professores voluntários. A presidência renova-se todos os anos, e parece que até agora se tem registrado uma generosa emulação em bem servir, da parte de todas as senhoras presidentes. Não vou citar nomes, que é enorme a lista dos benfeitores da casa que visitei, e me parece que essa gente toda não visa publicidade, mas apenas socorrer a malfadada minoria de crianças tocadas por tão cruel fatalidade. Deixai-me, porém, citar um nome, um único — o de dona Lucinda, a diretora, uma moça que largou família, carreira, e qualquer outra ambição feminina para ser mãe daquelas centenas de pequenos que não sendo órfãos, são mais desamparados do que órfãos, e que naquele sítio do Maracanaú encontraram não as frias quatro paredes de um asilo, mas um lar, onde são felizes e amados, onde aprendem a esquecer o passado e contar com segurança no futuro.