Outro dia passávamos de lotação pela avenida Brasil, quando defrontamos com o Instituto Manguinhos, levantando os seus torreões mouriscos no alto do morro. Um dos passageiros olhou para o virtuosíssimo prédio, onde talvez jamais entrou uma saia feminina que não seja em missão técnica ou científica – cutucou o vizinho e murmurou audivelmente, piscando um olho: “Era para ali que o imperador costumava levar as boas...”

Coitado de Manguinhos, construído quando do imperador só restavam ossos brancos. E contudo a ideia extravagante do vizinho de lotação deixou-me um laivo de suspeição contra o edifício, que realmente tem o seu ar de harém, com aqueles rendilhados mouriscos, aqueles torreões, aquela promessa de pátios misteriosos por dentro...

Mas a verdadeira casa, para onde o imperador, se não levava as boas, pelo menos instalou uma das ótimas, fica na avenida Pedro II, pertinho da Quinta da Boa Vista (et pour cause); dei com ela casualmente, quando me vi na contingência de ou me vacinar contra a febre amarela, ou não poder sobrevoar os céus de Portugal. Parece que o governo português ainda acredita que a peste desce dos céus, pelos miasmas do ar...

Pois entrei no casarão com finalidade tão prosaica e, quando me vi, estava nos paços de Domitila, segundo o disse um poeta cortesão do primeiro reinado. E ninguém estranhe que a casa da marquesa de Santos esteja abrigando o Serviço de Febre Amarela: fica até muito bem a aproximação, porque afinal de contas a febre amarela foi uma das mais notórias contemporâneas da marquesa...

Ademais os atuais inquilinos do prédio tratam-no com grande carinho; em vez de destruírem ou estragarem as relíquias que o prédio abriga, antes as valorizam, reconstituem, preservam. As pinturas do andar térreo, por exemplo, quando a casa foi entregue ao Serviço, estavam em grande parte cobertas com papel de paredes, e sob o papel, algumas figuras de nu viam-se ainda castamente encobertas por uma pudica mão de tinta a óleo!

Tem a casa os traços característicos do que poderemos chamar a arquitetura imperial – incluindo o que se fez não só no primeiro como no segundo reinado. A disposição dos cômodos, aquelas cimalhas de estilo clássico (que na casa da marquesa aparece na fachada lateral), a disposição e orientação dos cômodos. Muitas analogias de planta, por exemplo, tem o solar de Domitila com o palácio de Petrópolis que hoje abriga o Museu Imperial: o vestíbulo, com a pavimentação em mármore preto e branco e até aqueles nichos, infelizmente despojados das estátuas que os ocupavam. A escadaria nobre abre-se em dois braços sob uma cúpula envidraçada, dentro de um hall quadrado, em cujas paredes há pinturas alegóricas das quatro estações. De lá sai-se para uma galeria que liga a frente da casa à parte dos fundos; na frente ficam os salões, sendo que o da extrema direita tem cenas românticas, muito século XVIII, pintadas em medalhões, e o do centro orna-se com alegorias sobre as cinco partes do mundo; à extrema direita fica o grande salão de baile, naturalmente o mais pintado de todos. Os tetos também ostentam as suas pinturas, deusas ou ninfas ou sibilas, de colorido forte e grande vista. 

Na parte do fundo, além dos aposentos particulares, fica o salão de jantar em forma de rotunda – talvez a peça mais bela de uma casa. O parque é tão lindamente trabalhado numa talha miúda de medalhões e folhas, que até dá receio pisá-lo. Grandes armários embutidos, onde a marquesa devia guardar a baixela de ouro que lhe deu o seu imperial amante. A sala é de amplas proporções, mas dá uma impressão de intimidade, de cosyness, que se casa bem com a ideia dos repastos galantes que lá se faziam.

E por fim, no fundo, no ângulo da direita, dando janelas para o parque bem imperial, com as suas jaqueiras, mangueiras e pés de fruta-pão, os aposentos particulares da marquesa: a alcova, toda decorada com motivos campestres; numa das suas paredes vê-se a reprodução da famosa mosca que o imperador pintou (a autêntica foi retirada com o bloco de estuque e está no Museu Histórico). Ao lado da alcova o gabinete de toalete, quartinho estreito e sem janelas, como era de uso então.

Tudo bem pertinho do paço da Boa Vista; da sua janela podia muito bem Pedro I através do famoso binóculo enxergar as janelas do quarto de Domitila e, quando o coração lhe apertava, não precisava sequer chamar a carruagem ou mandar selar o cavalo: diz a lenda que ia a pé, assobiando, cortando os rebentões de mato com a ponta do rebenque.

E o que surpreende é a dignidade, até mesmo a nobreza com que vivia aquela gente. Até mesmo para abrigar amores adulterinos – aquela serenidade de casa grande, aquelas árvores caseiras no quintal, aquela ausência de mistério. Velhos tempos imperiais em que até o pecado era gordo e tranquilo e comia bem na sua louça da Índia, e fazia a sua sesta na rede da varanda, e tomava banho no tanque de azulejo, que exigia trabalho de muito negro e muito caldeirão no fogo para o encher até a borda de água morna...

rachel-de-queiroz
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