E pensar que já houve um tempo em que se podia correr o mundo inteiro sem precisar de passaporte. Ou, se passaporte havia, era um simples caderninho com retrato onde se apunham carimbos, e quase não tinha outra utilidade senão como souvenir de viagem.

Mas veio Mussolini, veio Hitler. Desceu sobre o mundo a cortina de ferro. E agora há a cortina americana do Senador McCarthy...

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Os Estados Unidos, com a sua nova política de portas fechadas, colocam em posição bem difícil os amigos que têm espalhados pelo mundo. Porque é difícil, mesmo ao amor mais apaixonado, resistir a tanto desprezo. Há pelo meu norte um ditado que diz: “Amor não é capim de burro”. Parece hermético, mas não o é. Pois o capim de burro é uma gramínea sem-vergonha que brota em qualquer lugar, nos interstícios da pedra do calçamento, na areia, no barro, no molhado e no seco, teimosa, miúda, mais raiz que folha, indestrutível.

Pois é, “Amor não é capim de burro”. E os americanos, descendentes de alemães que são em grande parte, têm isso em comum com os germânicos: gostam de ser amados. Fazem questão que os amem, e a coisa que mais lhes dói é saberem que tal e tal povo lhes faz restrições, que o parisiense zomba deles, que o húngaro lhes vota antipatia. Mas, a nós todos, que devemos amá-los, o que nos dão é amor de apache.

Um bofetão a todos os brasileiros, por exemplo, como foi o caso do visto no passaporte negado ao mais querido dos nossos escritores, o paraibano José Lins do Rego. Ao praticarem essa impertinência burocrática pensaram um momento os americanos no alcance que ela teria?

Detiveram-se a examinar este simples raciocínio: que insultando assim vagarosa e deliberadamente um dos maiores homens deste país, uma das nossas glórias mais sólidas, estavam investindo contra alguns séculos de amizade entre a terra deles e a nossa?

Outra coisa: se o afã principal do governo americano, no momento, é dar combate ao comunismo, não veem que, com isso, estão é servindo de agentes provocadores a serviço de Moscou? Não veem como os comunistas têm aproveitado ao máximo esse pratinho que lhes foi oferecido à la carte? Não veem como os stalinistas glosam os nossos “amigos”, como por sua vez fazem convites ao escritor desfeiteado, como ousam traçar paralelos entre a hospitalidade americana e os braços abertos que eles nos estendem para lá da cortina de ferro?

O pretexto invocado para a recusa do visto é que José Lins do Rego, anos atrás, assinou um manifesto contrário a Franco. Ora valha-me Deus, só agora ficamos sabendo que quem bole com Franco, bole com os Estados Unidos! Que diferença dos tempos de Roosevelt. Zé Lins assinou também um manifesto que protestava contra perseguições a escritores em Portugal. Isso é igualmente crime, hoje em dia, para os Estados Unidos, mexer com Salazar. Foi ditador, para eles é santo. Perón, também, deve estar intocável para os macartistas de Washington...

O que me pergunto é, diante desta nova política, como se hão de sentir aqueles americanos que perderam filho, pai ou marido, combatendo os correligionários de Franco, Salazar e Perón — os já esquecidos Adolph Hitler e Benito Mussolini?... Como se sentirão os mutilados e os veteranos da II Grande Guerra?

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Triste de um povo, mormente se esse povo é grande e poderoso, quando deixa de confiar na sua própria capacidade de recuperação e defesa, e fecha as suas fronteiras por um cordão de polícias. Quando consente que os mais reacionários, os menos inteligentes, tomem conta da sua direção. A Santa Aliança também era poderosa. E não evitou o esboroamento do Império Austríaco. E ainda há outros exemplos mais recentes e assustadores.

É verdade que, no momento, os nossos vizinhos lá de cima estão numa posição excepcional. Com o mundo dividido em dois campos, a gente é forçada a escolher. E que outra coisa a fazer, senão escolher os de cá? Ante o abraço mortal do urso vermelho, o melhor ainda é nos conformarmos com os cascudos e descortesias dos meninões daqui do hemisfério.

Não deixa, porém, de ser uma manifestação de arrogância infantil dos americanos usarem desse direito de exceção e, porque são ricos, porque são numerosos e estão do lado melhor, procederem assim, como adolescentes malcriados, ferindo, humilhando, desrespeitando os seus amigos — sim, a nós todos, seus amigos.

Aí, talvez eles até riam, vendo-nos a nós, tão pequenos, a alegar essa qualidade de amigos, e em nome dela, reclamar direitos. Nós, estes pobres mestiços sul-americanos, sem petróleo e sem dinheiro...

Mas será que nos Estados Unidos não se leem os fabulistas? E se os leem, será que não conhecem a história do leão e do rato?

rachel-de-queiroz
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