O importante é a gente não permitir que esta natural e recíproca ternura brasileiro-portuguesa influencie a nossa lucidez política. Quando aqui esteve o General Craveiro, muita gente, levada pela emoção do momento, chegou a confundir o bem-querer inegável que nos liga aos irmãos da banda de lá, com entusiasmo pela forma de governo de que o simpático general era o representante. Por isso nos censuram de grosseiros e inconvenientes quando, num grupo de escritores, publicamos nos jornais um abaixo assinado, no qual lembrávamos aos brasileiros que, apesar da gentileza do visitante, da admirável beleza de uma das senhoras da comitiva, da famosa austeridade do sr. Salazar, da boa ordem dos trens portugueses, da limpeza exemplar das ruas de Lisboa, convém não esquecer um ponto essencial: Portugal ainda vive sob uma ditadura.
Para provar que tínhamos razão com o lembrete, vem hoje um dos nossos mais ilustres jornalistas contar um pequeno caso recém-acontecido em Lisboa: um tribunal lisboeta manda para a cadeia dois advogados pelo crime ― imaginem! Pelo crime de advogar!
Nem aqui, no Estado Novo, o Tribunal de Segurança teve coragem de mexer com o Dr. Sobral Pinto porque defendia Prestes. Nem em nenhum lugar do mundo, que se saiba, advogado é considerado cúmplice do réu, porque o defende. É como prender um médico porque tratou de um criminoso, ou prender um padre porque confortou espiritualmente um condenado. E para vocês não pensarem que estou exagerando, cedo a palavra ao autor da denúncia, Pedro Dantas, ― que é o pseudônimo jornalístico de Prudente de Morais, neto.
Em processo-crime contra seis réus, acusados de atividades subversivas, era o dr. Palma Carlos advogado de quatro deles. Entre estes o dr. Humberto Lopes, também advogado, e cujo “crime” é digno de menção: havia ele emitido parecer sobre a situação jurídica de um preso político a quem havia sido aplicada medida de segurança. Esse parecer era a única prova contra o advogado-réu.... Foi o bastante para a condenação: dois anos e meio de prisão, medida de segurança com internamento até 3 anos e perda dos direitos políticos por 15 anos — o que, nos termos da legislação portuguesa, impede, igualmente, o exercício das profissões que exigem diploma. Imediatamente, após a leitura da sentença condenatória, o advogado Palma Carlos recorreu da mesma, pelo seu colega e constituinte, que até então se defendia sob fiança, visando, naturalmente, a obstar à imediata expedição do mandado de prisco em execução de sentença.
O presidente do tribunal indeferiu o requerimento, denegando o recurso. Requereu então o advogado que o presidente esclarecesse ou fundamentasse o seu despacho. Decidiu o presidente que nada havia que esclarecer. E como pretendesse recusar-se a fazer consignar na ata o requerimento formulado pelo advogado Palma Carlos, este proferiu as seguintes palavras: “Vossas Excelências podem julgar como lhes apetecer, com prova ou sem prova, mas o que não podem é deixar de consignar na ata tudo quanto na audiência se passar”. ― Este foi o crime do Dr. Palma Carlos. O tribunal, havendo por injuriosas essas palavras, deliberou processar o advogado, o que passou a fazer incontinenti, submetendo-o a processo ultra-sumaríssimo, com julgamento imediato. A esta altura o dr. Humberto Lopes injuriou, efetivamente, o tribunal. Foi mandado recolher à prisão e agredido pela Guarda Nacional. Sua mulher, que protestou, foi condenada a três dias de prisão (processos sumários, realmente, justiça rápida!) e evacuada a sala de sessões.
O advogado Palma Carlos foi então transferido da tribuna de defesa para o banco dos réus e intimado a apresentar testemunhas, quando, além dos que acumulavam a condição de ofendidos e julgadores, só agentes de polícia havia no recinto.... Arguiu, não obstante, a suspeição dos juízes. Desprezada essa arguição, o advogado convertido em réu desistiu de produzir defesa, declarando que prescindia da mesma pela certeza de que o tribunal iria proferir uma decisão digna das suas tradições. Esclareça-se que o seu julgamento foi iniciado por volta da meia-noite. Às quatro da madrugada de 24 de julho p.p. foi proferida a condenação do advogado Palma Carlos ― honra da tribuna judiciária portuguesa, ― a sete meses de prisão não remível, sete meses de multa a 40 escudos por dia e interdição do exercício da advocacia por um ano, a cumprir depois da pena de prisão. Recolhido à cadeia comum do Limoeiro, após o julgamento, lá ficou até às 12 horas, quando foi admitido a prestar fiança para aguardar, em liberdade, a decisão do recurso que interpôs.
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É isso o que acontece nas ditaduras, meus irmãos, ― mesmo nas que mais açucaradamente se disfarçam. Lembrem-se disso, lembrem-se bem, quando ingenuamente começarem a louvar o atual governo português porque elevou o câmbio do escudo ou porque manda asfaltar estradas.
Ditadura, seja qual for o seu disfarce, é sempre coisa ruim. Não há ditadura boa. Porque a sua aparente prosperidade, a sua celebrada ordem, trazem dentro de si um filão podre; é a corrução essencial ao poder absoluto que gangrena tudo e acaba atingindo a justiça, última ilha de liberdade dentro dos regimes de força.
De que vale você andar num trem de horário certo, se não sabe a sorte que o espera ao descer desse trem? De que serve não haver desemprego, se você não tem a certeza de exercer plenamente a profissão de sua escolha e pode cumprir pena infamante pelo crime de praticar honradamente essa profissão?
Não gosto de dizer palavras duras: mas um fato desses não é nazismo puro, fascismo nu e cru? Nem na Idade Média se prendia um advogado por defender um réu. E por falar em réu, nós aqui, conquanto que não se cometa crime, quem não mata, não rouba, não fere, tem mais ou menos a certeza de que não será chamado de réu. Mas lá, ninguém é livre de ser réu ― porque ninguém sabe mais o que é crime. Lá podemos ir para a cadeia, eu que escrevo, já que o meu ofício é escrever, mas também você que me lê. Pode ir para a cadeia o que toca música por solfa diferente, o padre que celebra, se não disser a missa ao santo deles, o professor que, embora ensinando certo, não ensine pela cartilha que eles querem.
Fiquem certos: aqui está ruim, mas lá está pior. Mil vezes a nossa bagunça, do que as espúrias delícias do “governo forte”. É a eterna história do cachorro solto e do cachorro de coleira.
Assim, o que nos cabe é ― ter cautela. Cautela por nós ― e, por eles, acho que só resta pedir a Deus Nosso Senhor que repita em favor dos seus amados portugueses o velho milagre de Ourique, e lhes devolva a liberdade e a glória.