Quem quiser mandar recados e lembranças, aproveite que estou às ordens. Em breve já não serei aqui. Saudades, a bem dizer, levo poucas, pois quem mais amo vai comigo.

Passa por cima de mar, passa por cima de rio. Setecentas léguas de terra, voando por cima delas. Céu tão azul que dói nos olhos; sobe, sobe, não tem nuvens, só a branquidão do sem-fim: e o avião cai nos buracos de vento quente, bate as asas, se equilibra, só Deus sabe o que lhe custa, que o céu é leve demais.

Chega nas terras de Minas. Foi-se embora o frio úmido do Rio, o ar não se aquece, mas parece refinado e a friagem abandona os pés e as mãos, entra é pelo sangue, como vinho, esquenta a cor das faces, chega a ter gosto de flor.

Corta as matas da Bahia. Voa, voa, acaba a serra e acaba a mata, começa a caatinga, que vista do alto não é verde como o outro mato comum, é cor de sépia ou cor de prata e às vezes cinza-negro. E, de repente, primeiro um lampejo de um cinza mais claro, lá de longe, depois se desenrolando todo, se espreguiçando no meio da terra quase nua, o rio: Senhor São Francisco. Tendo sorte, às vezes se avista um navio da Baiana, fumegando e batendo roda, andando tão devagar que até dá a impressão de parado. E daí talvez esteja mesmo parado, tomando lenha, pescando o peixe do almoço do comandante, ou conversando com alguém que se equilibra e dá risada à borda do barranco. Ou comprando pedra preciosa do garimpo que amarrou o cavalo num pé de pau à beira d'água e tira as pedrinhas de um saco de camurça e vai discutindo os preços com os passageiros apinhados na amurada do barco. Até que o comandante manda o navio apitar, o cavalo se assusta, o homem recolhe as pedras, a roda de popa torna a girar lentamente e a fumaça preta sai aos borbotões da chaminé.

Horas seguidas o avião acompanha o rio, parece que sente saudade de ir mais longe. Desta vez não é fumaça que se avista, mas a vela branca dum paquete, é feito um inseto deslizando na correnteza.

Afinal se acaba o rio – corta Pernambuco, entra no Ceará velho todo salpicado de açudes. Dava vontade de viajar de hidroplano e baixar em cada prato d'água, demorar um pouco, conversar com os conhecidos. Afinal, a igreja da Parangaba levanta entre o casario as suas torres quadradas. A cidade surge espalhada à beira-mar, as casas novas se conhecem pelo telhado vermelho e o campo do Cocorote é feito um açude seco onde o avião senta aos pulos, entrega a gente aos de terras e vai embora em busca do Piauí.

Mas nem é para ali que se vou. Para onde eu vou ficou atrás, passei voando por cima, doeu-me os olhos de tanto procurar e afinal não identifiquei nem a estação do trem, nem a casa velha e o açude – via tanto açude, tanta casa velha, tanta estação, mas nunca os três juntos, que era o sinal de certeza. Tenho que voltar de trem. E esperar dia certo, que trem é dia sim, dia não.

Bem, já disse que saudades não levo. Saudades irei matar, e criar saudades novas para trazê-las comigo, fresquinhas, piando dentro do peito como passarinho recém-nascido. Saudades irei chorar, dentro da casa vazia de quem se foi, os armadores sem rede, as redes sem gente dentro. Os livros que ninguém lê; a chuva e os relâmpagos que ninguém espia, a água no pluviômetro que ninguém mede mais. Ver como é que se portam as coisas sem o seu dono. Se elas têm mais vida do que os viventes, como é que continuam sem mudança, desamparadas da mão que as criou. Mal comparando, é quase a experiência de ver como andaria o mundo feito por Deus, depois que Deus fosse embora.

Morre tudo e a terra fica. Viúva pode ser, mas dando filhos, amando outros donos, florindo para novos olhos, já que os antigos não a enxergam mais. Quero ver. Quero ver se ainda encontro algum sinal das mãos que se foram dali. Ou escuto o eco da voz perdida, ressoando como dantes no pátio da fazenda velha. De tardinha, quando as vacas descem o alto, mugindo apressadas, enquanto de cá responde o choro dos bezerrinhos – será que ainda verei o vulto de quem as esperava encostado à porteira do curral? A novilha predileta, a Flor do Pasto,essa entrava devagar e o fitava como se entendesse, com os olhos grandes amorosos.

Na cama do pôr do sol, quando os passarinhos se aninham barulhentos na umarizeira centenária à margem do açude, e os peixes saltam à flor da água morna como em procura de fresco, estará perdida, à beira d'água, a marca dos seus rastros, quando vigiava a marcha irregular das ovelhas em caminho do telheiro? E em que alturas do ar estará pairando a vibração do seu riso manso, zombando com ternura da menina que carregava no colo o cordeiro enjeitado?

Se nada se perde no mundo, se luz, som, pensamento, alma, tudo tem substância e tem força, onde estarão a voz, o pensamento, a alma daqueles que fecham os olhos e se entregam às mãos dos outros, e são traiçoeiramente escondidos entre duas camadas duras do chão?

Tudo o que ele fez, mundo tumultuoso de esperanças e temores, o que aprendeu e não teve tempo de passar adiante, tudo isso para onde foi? Eco das palavras ditas, onde estará? Amor tão grande que enchia o seu peito, para onde terá ido depois que esfriou o coração? O morto é um estranho que ninguém conhece, chegou uma tarde, uma noite, partiu. Mas para onde foi o vivo que nos amava?

Setecentas léguas de terra e água, não de barco, não de avião ou de trem, mas andando com os pés descalços no chão duro, setecentas léguas andaria eu com gosto, para o buscar. Ou setecentas vezes setecentas. Mas no fim de cada caminho as encruzilhadas estão vazias; só se encontra outro caminho. E esse estará vazio também.

rachel-de-queiroz
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