Moço apanhou a espingarda e saiu sem destino pelo cajueiral. O sol quente, o vento fresco, os cajueiros cheios de maturi; de passarinho só uns anuns voejando entre as folhas do coqueiro catolé. Nem uma rolinha chorada que justificasse a queima de um cartucho. No fim da quinta de cajueiros, ao lado do mandiocal e do forno de carvão, topou uma casa de taipa, coberta de trepadeira, tão arriada e decadente que mais parecia um ninho velho de Maria-de-barro. Era contudo habitada, porque da cozinha saía fumaça, no quintal se via um canteiro suspenso, cheio de coentro novo e um poleiro encostado a um pé de jenipapo. No oitão, junto da pimenteira, mariscava uma galinha cinzenta acompanhada por treze pintinhos; eram uns pretos, outros vermelhos, outros cor de gema de ovo e um branco, de pescoço pelado, feito filhote de ave de presa – tudo tão vivo, tão lindo, assanhando a terra com as patinhas amarelas, que só de olhá-los dava um aperto comovido no coração da gente.

O moço parou no terreiro da casa, demorou um pouco olhando os pintinhos e acabou se sentando numa pedra que ficava debaixo de uma laranjeira espinhenta, muito verde e copada mas sem fruta. Passado um tempo, saiu na porta uma velha com cara de bruxa, que se encostou no umbral e pôs no moço o seu olhar empanado. Ele salvou, ela respondeu, falaram um pouco no tempo, na chuva de caju que estava para vir, no partidão de mandioca atrás de casa, já quase no ponto de arrancar; afinal a conversa caiu nos pintos, a velha dizendo que dos treze ovos que tinha deitado um sozinho não gerou, estava tudo se criando, benza-os Deus. E foi aí que o instinto de caçador falou no moço, e ele com vontade de dar um tiro perguntou se não andava muito gavião por ali perseguindo criação de terreiro. Aí, gavião dava, mas pouco, informou a velha. Nem sabia mesmo porque gavião ultimamente andava vasqueiro. O que perseguia os pintos e de vez em quando roubava um, era o demônio de um saguim de coleira branca que vivia sempre pela mangueira velha ali do lado. Até era milagre, aquela ninhada vir escapando...

Falar no mal logo ele aparece; e ainda a velha estava com as últimas palavras na boca quando surgiu o saguim a bem dizer voando nas pontas de galho da mangueira, guinchando, assobiando e fazendo careta, como se soubesse que a conversa era com ele. A velha esconjurou, saiu para o terreiro, abriu a saia rala por cima dos pintos, tentando protegê-los, e berrou para o moço dar um tiro naquele amaldiçoado que estava até fazendo pouco deles, de longe.

Boca que mal falou, o moço ouviu, levou a espingarda ao rosto, fez pontaria e atirou. O saguim, atingido no peito, caiu como um bolo nas folhas secas do chão.

Pontaria e tiro, tudo foi um só impulso; mas depois que a espoleta deflagrou, no segundo em que o chumbo fazia o caminho do cano da arma para o coração do bicho, um pensamento, como uma faísca, fulminou o moço. Que saguim não come pinto ‒ aquilo era falso da velha. Saguim só come fruta. É um bichinho inocente, jamais soube o gosto que sangue tem. Lembrando-se daquilo, deu no moço um arrependimento tão grande, que ainda estendeu a mão no ar, como se quisesse segurar o tiro no voo.

Ouvindo o estampido do tiro, a velha correra para dentro de casa e cerrara rapidamente a porta. Caduca, naturalmente. E malvada, dizer que saguim comia pinto, um bichinho tão bonito, tão faceiro, ladrão só de coco catolé!

O macaquinho jazia num bolo, de mãos postas como um cristão. E o moço voltou a se sentar na pedra, teve vontade de rebolar a espingarda fora; não jogou mesmo porque não era dele. E ficou a olhar a casa, os pintos e o saguim defunto, tão triste que só não chorava porque desde menino se habituara à lei de que homem não chora.

*

Este caso é uma história triste que sucedeu de verdade mas bem poderia ser um apólogo. A moralidade é que armas, no próprio instante em que a gente as segura, fica sujeito ao impulso de as utilizar, porque todo instrumento gera no homem o desejo de lhe dar serventia. Quem tem um canivete na mão sai cortando coisas, quem tem uma viola bate nas cordas, quem tem um lápis começa a riscar ‒ e assim quem pega numa arma que só serve para matar, o natural é que mate. Muito crime nasce disso muitas guerras também. Cada objeto, animado ou inanimado, é escravo da sua serventia. E se esperamos que o bonde corra, que o coração ame, que o sino badale, como esperar que a faca não fure e a espingarda não atire? Se vê na frente um pecador, atira no pecador; mas se só encontra inocente, pague o inocente por ele, que o que ela quer é matar.

 

rachel-de-queiroz
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