Bisneta de espanhola, neta de austríaca, filha de italiana, casada com um francês, seria, entretanto, possível existir senhora mais brasileira do que sua alteza imperial a princesa dona Isabel? Aliás, indo mais longe, houve nunca família mais brasileira do que a família imperial? Não existe paulista nem pernambucano de quatrocentos anos que seja mais antigo na brasilidade do que a gente da casa de Bragança, ramo da casa d’Aviz, à qual pertenciam o senhor infante dom Henrique e el-rei Dom Manuel, nossos inventores, nossos padrinhos de nascimento. E desde esse ano de 1500, nunca deixou de haver, à cabeceira do berço esplêndido, um príncipe reinante dessas casas, a velar pelo gigante deitado.
Era, pois, uma extravagância que as cinzas de príncipes tão brasileiros repousassem em terras estranhas, como se daqui houvessem partido impelidos por alguma fera revolução, das que afogam tudo em sangue e fogo. O desterro do imperador e da sua família está se vendo hoje que foi uma crueldade desnecessária, mesmo se proclamando a república. Podíamos muito bem ter deixado que eles ficassem morando na sua chácara de Petrópolis: o sr. dom Pedro II, com aquela sua vocação constitucional, não representaria para o regime perigo maior do que representa hoje o Marechal Dutra, na sua casa de Ipanema. Seria incapaz de se meter em conspiratas, respeitaria a nova ordem constituída, e haveríamos de o ver nas eleições, de barbas brancas e sobrecasaca abotoada, a votar nos candidatos petropolitanos — se a república por acaso lhe desse carta de eleitor.
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Lendo as cartas íntimas de dona Isabel, agora publicadas em parte, pelo sr. Guilherme Auler, numa excelente plaquette (que só se lamenta não ser maior) fica a gente enternecida, tocada no coração, por sentir quanto aquela senhora era da sua terra e do seu tempo; que as circunstâncias do nascimento e do destino político em nada lhe alteraram a feição brasileira; parece-nos estar em contato com qualquer outra dama fluminense dos fins do século passado, com as quais nos familiarizamos através dos romancistas da época — um Macedinho, um Taunay, um Alencar; e não dizemos um Machado porque a princesa não era suficientemente sofisticada para heroína de Machado. A sua linguagem, os seus modismos, os seus interesses, suas amizades, sua vida social, os ingênuos potins que repete — ninguém dirá, lendo aquelas cartas sem ver a assinatura que são a correspondência de uma princesa herdeira, várias vezes regente, endereçadas a el-rei seu pai. São cartas de uma menina brasileira de boa família, depois moça, depois matrona, comunicando-se afetuosamente com o seu papai que desceu para a Corte. Se até o trata de “você”! Ternura, simplicidade, quase humildade. Seus desejos são os mesmos de qualquer moça provinciana de então; os presentes que pede aos pais — “papelão para fazer uma casa de bonecas”; “quatro bonecas pequeninas”, “um par de castanholas”. Moça feita não pede colares nem diademas, como o faria outra princesa; igual a uma iaiá de Mata-cavalos, o seu sonho é um piano. Garota, chega a queixar-se de que jantou apenas “batatas e arroz” porque só lhe deram “peixe de lata”!
Recém-casada, seu príncipe francês não lhe altera a simplicidade, antes se adapta ao modo de vida modesto da família imperial. Casada de pouco igualmente estava a princesa Leopoldina, a quem Isabel chama tão brasileiramente de “mana”. As duas noivas se convidam reciprocamente para jantar, e é este o comentário característico de Isabel ao falar no convite da irmã: “Espero ter um bom jantar, quanto à sobremesa, porém, já tenho notícia de que não tem sido famosa a respeito de doces”. Até pela pontuação, até pela sintaxe e pelo brasileiro amor aos doces, não parecem duas burguezinhas de São Cristóvão, saídas do Moço loiro ou da Rosa, de Macedo?
A recém-casada evolui na matrona que ocasionalmente chega a regente do império. Mas em nada se alterou a ingênua, a doce princesinha que não gostava de peixe de lata. Os assuntos nacionais ela os trata à sua maneira singela de boa mãe de família; a política, ela a encara com desconfiança e medo, exatamente como faria qualquer outra dama sua contemporânea, mulher de senador ou ministra. “A política é tão maçante e intrincada que só lhe direi que as Câmaras se abrirão nestes dias próximos e não sei se o Ministério aturará muito tempo. Veremos”. Parece observação de princesa reinante? Não seriam palavras idênticas que sairiam da pena da minha avó, ou da sua avó, leitor, ao dar notícias da terra ao pai, político, ausente na Europa?
Dir-se-á que, com tudo isso, a princesa mostrava que nada tinha de estadista que muito bem fizeram em lhe tirando dos ombros os encargos do governo. Talvez. Mas fraca estadista também, apenas boa mãe, esposa amante e viúva inconsolável, foi a rainha Victoria (com a qual a princesa Isabel tinha inúmeros pontos de semelhança) e o seu reinado marcou a idade de ouro da Inglaterra. É que no moderno regime monárquico, o soberano, sendo apenas o poder moderador, não carece de envergadura de águia para o exercer. Basta que tenha bom-senso, honestidade, coração. Que isso não exclui um lampejo de heroísmo, de vez em quando, como o mostrou Isabel por ocasião do 13 de maio, arriscando conscientemente a sua coroa por amor a uma ideia bonita e de um gesto generoso.