“Quem pecou não peque mais” ― era isso que recomendava o padre Cícero na sua benção vespertina. “Reze o Eu pecador, faça penitência e peça misericórdia”.

O mais difícil há de ser a escolha do que é bem e do que é mal: cada um tem de consultar a própria consciência e ver a qualidade do seu erro, onde foi que traiu o espírito ou traiu a carne, pois a carne também tem suas leis e a sua ética. Aquele que peca de gula, por exemplo, peca contra carne. E aquele que mente, é claro que peca contra o espírito. E quem diz que ama sem amar e simula os gestos do amor sem amor sentir, peca ao mesmo tempo contra a carne e contra o espírito porque aí são o corpo e a alma os ofensores ― ou os ofendidos.

Disse acima que pecam os que mentem, mas há os que mentem e não pecam. Sua mentira não é nem jocosa, nem oficiosa, nem perniciosa ― e são só essas três as qualidades de mentira padronizadas pelo catecismo. Digamos que é mentira poética ou mentira artística, embora os mentirosos dessas mentiras não as ponham no papel impresso, nem na tela, nem no mármore. Dispersam as invenções pelas conversas de café, de salão e de esquina. São homens de coração piedoso e imaginação ardente, e se compadecem e buscam evasão desta feiura de mundo em que vivemos; criam por isso um jardim de mentiras e convidam os seus amigos a colher flores naquele jardim. Falam de riquezas que nunca tiveram, de amores que nunca sentiram, viagens que nunca viajaram. Inventam terras que não existem, façanhas jamais executadas por heróis que ainda não nasceram; ou se incarnam eles próprios nesse herói nonato, fardam-se de pirata ou de cavaleiro, embarcam na galera aventurosa ou cavalgam o negro corcel. Para esses mentirosos não há pecado, naturalmente. E talvez no seu céu encontrem realizadas todas as esplêndidas mentiras com que sonharam e fizeram os outros sonhar.

Pecam, sim, os que mentem para colher proveito, os que levantam falso testemunho, os que se gabam por vaidade ou por impostoria.

Quanto aos que bebem, pecam os que bebem para encher o estômago ou encher a tripa. Mas não pecam os que bebem na ânsia de encher um coração vazio ou para saciar a alma ressequida. Desses sei de certeza que têm igualmente no céu o seu lugar reservado ― um recanto plantado de girassóis e lírios que cheiram a lança-perfume. E lá os bêbados gozam da bem-aventurança, sem ressaca nem aspirina, declamando poemas, fazendo confidências, planejando suicídios, chorando mágoas alcoólicas, debruçados ao alvo ombro do seu anjo da guarda.

Pecam os cobiçosos, os que se afadigam atrás de dinheiro e poder. Mas não sei se fará parte dessa mesma feia ambição o desejo de possuir a terra, de agarrar-se à terra. Porque a terra é o nosso princípio e o nosso fim, e possuí-la, ser dono dela, ter de seu um pedaço de chão, é um pouco como voltar ao ventre de nossa mãe, ou aumentar aquele chão à nossa carne e ao nosso sangue. Direi que quase como o mistério do amor esse aumento de uma outra coisa viva ao nosso ser vivo, uma outra maneira de nos prolongarmos, de continuarmos, nos reproduzindo em plantas e em bichos, como nos reproduzimos em filhos. Não, nada com a terra pode ser pecado.

Enfim, pecam sem remissão os mesquinhos, os covardes ― quero dizer, os covardes que usam a fraqueza dos outros para exercício da sua crueldade. Pois aqui também cabe uma ressalva: os medrosos não pecam, antes pecam os bravos porque são arrogantes. O medo é o mais antigo e fiel companheiro do homem e é o medo que nos faz conhecer nossas limitações e nos torna humildes. E não há outra virtude que mais agrade ao céu do que a humildade, nem outro pecado mais desagradável do que a soberba. Soberbo foi Lúcifer, espírito do orgulho, que rolou nas profundas perseguido pela espada de fogo de São Miguel Arcanjo.

No fim de tudo, verdade positiva é que só o homem, lá dentro do seu coração, sabe quando pecou. Ele é que cria o seu bem e o seu mal; e muitas vezes peca fazendo bem, porque o tem como mal, e sendo a sua intenção de malícia, pode ter toda aparência de bem que bem não será. A bondade é o contrário da beleza; uma só da aparência vive e à outra a aparência de nada serve. Por isso nunca digas esse truísmo mentiroso que o bom é o belo; em mil casos por um, o bom é quase sempre o feio.

rachel-de-queiroz
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