Meu querido leitor, parece-me um pouco estranho estar de novo nesta velha máquina, batendo esta eterna crônica. Porque, amigo, vou lhe contar um segredo: durante três semanas consumiu você a nossa última página de certo modo requentada, porque fora entregue antecipadamente, com vinte e um dias de adiantamento, ― e enquanto isso meu corpo e minha alma andavam em lugares distantes, pelo sertão, pela caatinga brava, à sombra dos serrotes do Quixadá, matando saudades, revendo meu chão. Sim, andei longe; tive que voar para ganhar tempo e ainda me sinto meio arriada da viagem, porque a verdade é que não nasci para passarinho. Judiem de todo jeito comigo, dêem até pancada; mas voar, não. Enfim, não adianta chorar nem o leite derramado, nem o voo voado. O melhor é pensar em outras coisas.

Coisas alegres, por exemplo; contar anedotas; as “últimas” do sertão. Como a do delegado, que é a que mais se conta agora na ribeira do Sitiá.

Estava uma noite o delegado, na sua delegacia, fazendo justiça, segundo convém. E eis que entram de portas a dentro quatro homens resfolegantes, pedindo providências, dizendo que estava havendo uma arruaça dos diabos na pensão alegre da madama da Rua do Baturité.

É essa madama gaúcha e vampiresca, espécie de Cleo de Merole com casa de pensão ― e mais por ela do que pelas pensionistas suspiram os cavalheiros locais, inclusive o próprio delegado, dizem.

Ciente do rolo, a autoridade bateu palmas, chamou o cabo:

― Seu cabo, vá lá na pensão Gaúcha e diga à madama que venha falar comigo, já e já! Fico aqui esperando.

Saiu o cabo. Custou. O delegado andava na sala impaciente, indeciso, já sem saber se esperava mais ou se iria em pessoa resolver o conflito.

Afinal apareceu o cabo, sozinho, meio encafifado, se metendo num canto. O delegado trovejou:

― Cabo! Cadê a madama? 

― Ela não veio não senhor... 

― Por quê? Não dei ordem? Não disse que trouxesse a madama aqui? 

― Deu ordem, sim senhor. Mas a madama mandou dizer que não vinha não. 

A autoridade esbravejou, no auge:

― O que? Mandou dizer que não vinha? Mandou esse recado? 

O cabo, urgido, criou coragem, despejou:

― É, sim senhor: mandou dizer que não vinha. Eu disse que era ordem do delegado. E aí ela me encomendou bem dez vezes que dissesse a Vossa Senhoria que ela não vinha porque não queria, porque não faz conta do senhor.

O delegado já estava em cima do soldado. Parecia uma fera:

― Mandou dizer que não vinha, hein? Cabo! Volte à pensão Gaúcha! E diga àquela madama que se ela não faz conta de mim, muito menos faço eu conta dela!

*

A segunda sucedeu numa festa, a coisa de meia légua lá de casa. 

O samba estava quente tanto na sala como na latada do terreiro. Mas na cozinha de fogos apagados armavam-se duas redes, onde descansavam um pouco das fadigas do baile o meu primo Joaquinzinho e um seu companheiro, o viúvo João Valenciano, que anda atrás de noiva e não relaxa festa.

Cochilavam ambos, quando entrou na cozinha o velhote Felismino; nas pontas dos pés, arrastando a mulher pela mão, e curvando-se todo, a fim de não roçar nos punhos das redes. O meu primo Joaquinzinho acordou, entretanto, sentou-se, estranhou aquela saída furtiva:

― Que é isso, compadre Felismino, enjoou-se da festa? Ou lhe fizeram algum agravo?

O compadre Felismino corou, gaguejou, fez menção de ir embora sem explicar nada. Mas por fim não se conteve, contou:

― Agravo, agravo, não me fizeram, meu compadre. Mas é melhor nós sair. Não vê que apareceu um peste dum indivíduo que só acha jeito de dançar com a minha velha, ― parece até que só tem ela de dama na sala. E é um repinicado, uma dança agoniada, um miudinho, um atracado da dama pelos ombros, um fuça-fuça no cabelo dela... Eu quis disfarçar, chamei a mulher no corredor e o diabo veio atrás... Levei a mulher pro terreiro e o condenado atrás... Tornei a levar para a sala e o diabo atrás... E então, como não quero fazer desfeita em casa alheia, fingi que vinha na cozinha tomar um caneco d’água, mas daqui vou é me embora, pela porta dos fundos... E vou indo é ligeiro, que o desgraçado é capaz de estar aí, na minha pisada...

Nesse ponto o João Valenciano levantou a varanda da rede com que encobria o rosto, abriu um olho, e recomendou:

― Pois então corra, compadre.... Corra, agarre a dona e cuide de si, que o cabra é rastejador...

rachel-de-queiroz
x
- +