Sei que a atitude de quase todo mundo é a mesma, ante a ameaça de recenseamento: ninguém gosta de ser contado. Ofende às presunções do nosso ego ser tratado como simples unidade num rebanho de milhões e desagrada fornecer ao governo, para utilização desconhecida, os dados sobre tudo que nos diz respeito — nome, idade, filiação, naturalidade, cor, estado civil, religião, meio de vida. A velha desconfiança para com o governo nos diz lá dentro que aquilo não pode ser para bom fim e que, escrachando-nos com tanta minúcia em papel oficial, de certo modo obscuro nos ameaçam a liberdade. Claro que todos gostam de falar de si próprios, de dar informações de si; mas uma coisa é contarmos o que nos diz respeito ao nosso modo, escolhendo o que interessa e o que nos pode trazer prestígio, e outra coisa é a verdade nua e crua, reduzidas a algarismos e a vocábulos estatísticos.

Isso, porém, é se encararmos o recenseamento sob o nosso simples ponto de vista; mas tudo no mundo tem pelo menos dois lados, e assim temos também que encarar a necessidade do recenseamento pelo outro lado, o lado do governo.

Ora, todos sabemos que os governos, o de hoje como o de ontem, poderiam governar melhor. Porém nisso, como em tudo o mais, temos que usar de uma certa dose do que no inglês se chama fair-play, e que a gente pode traduzir por jogo limpo. Se exigimos do governo que governe, temos que lhe fornecer pelo menos os meios de governar, pois não? E o governo, para distribuir escolas, hospitais, estradas, carece de saber quem precisa deles e em que lugar; não pode agir às cegas. É como uma dona de casa ou, em proporções maiores, o dono de um hotel, de um colégio ou o comandante de um quartel: precisa de saber quantas pessoas tem em casa, quantos pratos deve servir, quantas camas arrumar, que necessidades diversas de um e de outro deve satisfazer.

Chegam ao governo, por exemplo, reclamações da zona amazônica dizendo que a malária por lá anda comendo de esmola e que o presidente dê um jeito, mande remédio para os doentes e DDT para os mosquitos. Mas como poderá o governo atender eficientemente ao apelo, se ignora quanto em medicamentos, quantos médicos são precisos, qual é o raio da zona afetada que ele deve socorrer?

Vêm telegramas do Ceará contando que “quase toda a população do Cariri ameaça emigrar, assustada com as ameaças de seca”. O governo, assustado também, procura impedir o êxodo de toda aquela gente, dar-lhes trabalho, enviar auxílio, mas em que cifras se baseara para fazer uma ideia de quantos milhares ou milhões de pessoas constituem aquela vaga enumeração “quase toda a população de Cariri”? E o mesmo se dá quando é de Goiás que pedem estradas, ou de Minas que pedem um hospital.

A gente fala do governo porque não põe um paradeiro à direção antibrasileira em que se obstinam certos núcleos estrangeiros de alemães e japoneses no Sul; mas como pode o governo agir com a precisão indispensável se ignora com quantos alemães ou quantos nipônicos terá que lidar nas suas campanhas de nacionalização?

O próprio orçamento nacional, para ser organizado com justeza tem que se basear em dados estatísticos seguros; e a segurança desses dados estatísticos depende toda de um bom recenseamento.

A 1° de julho de 1950 terá início o 6° recenseamento que se faz no Brasil. Quer dizer que em 128 anos de independência, afinal, governo não nos tem amolado muito com contagens. Dá a média de uma vez por cada 20 anos.

O papel, portanto, é todo mundo ter paciência, receber com bons modos os recenseadores, que afinal estão sofrendo muito mais que nós, naquela via-crúcis. Contar a história direitinho, certos de que as informações fornecidas jamais serão divulgadas, jamais serão usadas como provas contra nós, e que o recenseador por acaso culpado de indiscrição, será punido com severa pena, que pode ser até de prisão. Há uma lei explícita determinando isso tudo; lei que tem se mostrado eficiente, pois nos cinco recenseamentos passados jamais houve um caso de quebra de sigilo a lamentar.

Vamos então dizer tudo com verdade e segurança. Depois, teremos pelo menos o direito de estrilar quando não nos derem as escolas, os hospitais, as estradas, os demais benefícios eternamente prometidos. E nem o governo poderá por sua vez alegar que não faz isto ou não fez aquilo porque não sabia a quem, ou onde levar o seu auxílio...

rachel-de-queiroz
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