Vamos chegando ao fim do ano. Ora graças. Embora ninguém goste muito de fim de ano, porque há qualquer coisa de liquidado, de perdido — eu ia dizendo desperdiçado — num ano que se acaba.
Afinal que é que o tempo come? A gente, claro. Vai devorando, roendo, chupando — o ossinho tenro, a face corada, a perna rija. E logo mais, quando já consumiu com o tutano todo, só deixou a gordura feia que não presta, a pele enrugada, o cabelo descorado, aí o tempo larga e deixa que chegue a vez da Outra.
Natural, portanto, que os viventes tenham essa repugnância pelo risco na parede marcando a passagem de mais um dia, um mês, um ano. O próprio Robinson, no seu desterro, também sentia um aperto de coração ao marcar o tempo no tronco, com a sua faca. Que gosto pode sentir a gente em constatar que está mais perto a hora de se entregar à Amarela, de descer mais um passo no caminho dos sete palmos? E então fazemos com o tempo o que costumamos fazer com tudo de que temos medo — enfeitamos. Enfeitamos o ano que se acaba como enfeitamos a morte, com flores e cantigas. Talvez para disfarçar, distrair o pensamento daquilo, talvez para propiciar os espíritos obscuros. E simulamos igualmente que recebemos o Ano-Novo com um alvoroço de nascimento — embora saibamos muito bem que ele será simples fonte de melancolias, — cada primeiro de janeiro já nos encontra diferente do seu irmão do ano passado — mais desgastados, mais doentes do fígado, mais desconfiados, mais avarentos, mais desenganados. Não é à toa que a data que marca o fim do ano é o 2 de novembro, com a sua festa dos fiéis defuntos. Sim, porque não me digam que é o Natal — Natal já é praticamente Ano-Novo e cria como uma ilha particular na paisagem dos onze meses restantes. E ainda há alguns que para eles nem o Natal serve. Eu, por fim, confesso que se vejo no Nascimento muitos motivos de ternura, já não sei enxergar nele causa especial de alegria.
Bem, de qualquer jeito, acabado vai 1955. Não deixa saudades, creio. Muitas angústias, isso sim, mormente angústias cívicas, noite após noite agarrados ao rádio, escutando e conjeturando. E por fim se vê que o ano resultou numa série de journée des dupes, que juntas formaram uma verdadeira année des dupes...
O signo é o da confusão. Ou melhor diria, para nós pessoas sem o orgulho, o signo é o da perplexidade. Porque se a gente pudesse abrir a boca e dizer “quero isto”! ainda seria muito bom. Mas quem sabe o que quer — o que tem direito de querer?
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Felizmente, quando olhamos o mundo, lá fora, já daqui temos perspectiva bastante para vislumbrar no meio da massa confusa de acontecimentos inesperados umas seguras luzes de esperança. O drama do colonialismo, por exemplo. O fim do reinado do branco — ou do seu fardo como queria mister Kipling... A insurreição dos povos de cor parece uma maré inexorável, que se aqui avança e ali aparentemente recua, em toda parte ganha terreno, nem que seja muito pouco.
Obscuros são os caminhos da História, e é por isso que tantas vezes nos perdemos na sua interpretação. Quem vê o caso dos Mau-mau, por exemplo: é barbaria, é, mas também é progresso. Porque agora, que se rebelam e que matam, já estão um passo adiante do tempo em que se sujeitavam como brutos que só entendem o chicote. Faz muita pena tanta gente assassinada — mas não devemos esquecer de que aquilo é guerra — feita barbaramente, à moda de primitivos, mas guerra de qualquer maneira, e guerra de libertação. Podemos também lembrar que se este punhado de ingleses mortos pelos negros terroristas forem postos num dos pratos da balança e em outro prato pusermos os milhares de homens, de “nativos”, liquidados pelos ingleses em alguns séculos de massacres — veremos que o preço do sangue não está sendo cobrado tão alto assim. Mas não são apenas os ingleses que veem chegar a hora do ajuste de contas, é a França também, como foi a Holanda, como serão todos — e já estava na hora.
Compete agora à inteligência do europeu, e seus descendentes nas outras partes do mundo, compreender que passou a era dos povos cativos, como no século passado se dizia que passara a hora de cativeiro individual. E que aos antigos senhores cabe recuar com graça, se não querem que os soviéticos vistam a pele de libertadores e recebam todos os juros do feito.
Sim, a confusão é grande, inclusive aqui. Especialmente aqui. Mas, como já disse, de longe em longe uma pequena claridade alumia. Quem sabe já é o primeiro sinal da madrugada? — um dia novo que amanhece. Nós, que já vivermos o dia de ontem, partiremos decerto antes da hora do meio-dia. Mas os meninos vão nascendo. Vão nascendo, resistindo, ficando. Benza-os Deus e os ajude, que eles ficam.