O distinto público desculpe, mas a cronista não está hoje para crônicas. Hoje só nos interessa pensar no nosso romance que chegou na sua hora de ser concluído, publicado, vendido, criticado, esquecido; fazer seu ciclo de vida, igual ao dos homens e dos bichos. Ou antes, imitação de vida, porque papel nunca será carne.

Mas uma vez que o espaço desta última página deve ser preenchido de qualquer maneira, poderemos quando muito dar uns toques a respeito do romance. Talvez tenha algum interesse, pois que livro não lido sempre desperta curiosidade — embora depois de lido só venha a despertar tédio.

São duas as heroínas!, uma senhora de idade sobre a qual nada vos diremos porque nela é que está o mistério; a outra é uma moça de olhos azuis chamada Maria Bárbara. Vê-se logo que estranhais essa moça de sertão ter olhos assim azuis; em compensação, nós estranhamos o vosso engano. Ah, se visseis os olhos azuis da nossa prima Chavinha e os dourados cabelos da sua irmã Cecília! É esse o mal de quem não cria galinhas, nem ratos brancos, nem sequer cultiva ervilhas; desconheceis as leis de Mendel. Senão logo reconhecereis em Chavinha, como em Maria Bárbara, como em Cecília, os tipos recessivos de um perdido avô flamengo; na pele, no cabelo, nos olhos, elas são flamengas puras, tal como em meio das gerações de ratos pardos, nasce sempre um ratinho branco. Flamengas recessivas, leitor, nada mais.

Aqui cabe um reparo: a palavra flamengo, no Rio de Janeiro tem um sentido, no Norte tem outro. Na província, flamengo é a loura esporádica, recordação mendeliana do antepassado herege; mas na gíria dos galās desta cidade, “moça-flamengo” é aquela que tem boca vermelha e cabelo preto, ostentando na face as cores do clube ex-campeão. (Viva o Vasco!). Aqui o esporte; lá a lembrança do conquistador holandês, ou marinheiro, ou galego, ou seja como for, que estrangeiro, nas nossas terras, basta ser ruivo para que o chamem com todos esses nomes.

Assim a moça tem todo o direito aos seus olhos azuis, e como foi dito acima, se chama Maria Bárbara. Vai amar, sofrer, odiar, padecer tanto, coitadinha. Nasceu, é isso; até mesmo em romance. Acaba velha e desiludida. Não sabemos se ireis gostar dela, porque é rapariga fria e desigual, cheia de rancores recalcados, de dores inexprimidas, de amores deixados em meio, de aspirações sufocadas. Alma de cobra, ou alma de gata; alma de moça de casa grande, esmagada por alguém maior que ela e os seus desejos, talvez.

O cenário, que muito bem poderia ser o outro personagem, é o sertão. O céu por cima, a terra, áspera por baixo e, entre o céu e a terra, os pobres homens, a caatinga rala, os bois, a criação miúda. Tudo querendo crescer, brotar folhas, gerar filhos, lutando contra o céu e a terra que ora lhes dão tudo, ora lhes tiram tudo. Os campestres cobertos de capim panasco, ondulando ao sol da manhã, como um oceano cor-de-rosa. As lagoas enristadas de pacaviras, os mofumbos abrindo flor em junho com uma violência de cheiro tão pungente que em cada moita parece haver uma capela. Os serrotes brancos, cinzas e azuis, cor de aço e cor de cobre, levantando-se abruptamente da terra, como se não fossem dali, como se viessem expelidos das entranhas misteriosas do mundo, e apontassem por sobre a terra inocente, nus, sem uma folha, sem um sinal de vida, abrolhos da terra, repentinos e isolados como os abrolhos do mar.

E as águas que nascem e morrem, águas de inverno, criadeiras e amigas, se espalhando em riachos, em paúis e lagoas, que se enchem idilicamente de aguapés em flor e marrecas aninhando. Ou as águas fugitivas de verão, que só são vistas quando prisioneiras, e assim mesmo procuram uma frincha, uma revência por onde escapem, ou se desfazem ao calor do dia: fingem que estranham aquela terra seca e morta, e anseiam por voltar ao céu de onde vieram, como uma alma de justo.

E será o sertão o principal adversário com que luta a pobre Maria Bárbara, no seu casarão de taipa e telha vã, que ela tem como um paço, pois de paço goza a senhoria, sendo a casa-grande, a fazenda. Não admira que na luta as suas mãos magras se encham de veias, os olhos azuis desbotem, o coração se encha de fel.

* * *

Como vedes, será uma história triste. Talvez tenha algum riso, pois até defunto sorri no caixão, quanto mais os vivos. Mas não cantará glórias, nem belos amores, nem triunfos, nem gerará otimismo e confiança. Uma história de inquietação. Pensando bem, será melhor não a escrever. Quem quer saber de amarguras? E para que escrever mais um livro? O mundo anda cheio de livros, muito piores do que os homens maus que eles tentam descrever; e aliás, talvez nunca tenha havido um homem mau; só gente errada, gente triste, gente fraca. Carne fraca. Ai, homens que andais vivos agora, e mais tarde sereis homens de pó, que será feito então do vosso mal e do vosso bem?

rachel-de-queiroz
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