Um jovem de 20 anos escreve-me de Belo Horizonte e, reportando-se a uma referência feita em crônica anterior, pede que lhe fale a respeito de Sacco e Vanzetti.

Com gosto atendo ao seu pedido, rapaz. Com gosto, e comovida, pois o drama de Sacco e Vanzetti marcou com um traço inapagável os que éramos então adolescentes. Nós não fôramos criados num mundo de horrores como o foram vocês, ― antes vivíamos numa espécie de idade de inocência ou num palácio de mentiras, considerávamos o Mal e o Bem apenas um binômio metafísico, e não as duas forças realmente em luta pela posse do mundo. E a tragédia de Sacco e Vanzetti de certa maneira condicionou o destino de muitos de nós ― tirando-nos daquele caminho fácil e descuidado que por todas as razões pareceria ser o nosso.

Mas isso já é outra história, e o que você deseja é um resumo do caso famoso, que tentarei lhe dar em poucas linhas:

A 15 de abril de 1920 foi assaltada uma fábrica de calçados no estado de Massachusetts, E.U.A., em dia de pagamento do pessoal. Eram dois homens os assaltantes, os quais, além de levarem o dinheiro da folha, assassinaram o guarda e o pagador.

As pesquisas da polícia ― segundo se diz, deliberadamente mal dirigidas ― indicaram como responsáveis pelo crime dois operários de origem italiana, Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti: descobrira-se que ambos usavam armas de fogo e, pior ainda — reclamaram a posse do carro que a polícia identificara como tendo servido aos criminosos. O que entretanto mais militava contra os dois acusados era a sua qualidade de líderes radicais, agitadores, anarquistas.

Porém a verdade é que Sacco e Vanzetti não eram culpados. No julgamento a que foram submetidos na cidade de Dedham, em Massachusetts, apresentaram várias testemunhas que provavam a ausência de ambos da cena do crime. Esses testemunhos, contudo, não foram levados em conta. A maioria das provas apresentadas contra os acusados durante o julgamento foram depois refutadas ― e nem isso valeu de nada aos desgraçados. Afinal de contas ― diriam os puritanos de Boston ― aqueles homens eram ou não eram inimigos da ordem estabelecida, anarquistas perigosos?

Em 1927 ainda se arrastava a causa, e o governador de Massachusetts, Fuller, premido pela opinião pública não só da sua terra mas do mundo inteiro, nomeou uma comissão investigadora a fim de apurar a culpabilidade dos réus. Formavam essa comissão o presidente da Universidade de Harvard ― Lowell ―, o presidente do Instituto de Tecnologia do Estado ― Stratton ― e o juiz Robert Grant. Tão parcial era a comissão que apesar do depoimento de um sentenciado, o ex-gângster Madeiros, antigo membro da quadrilha que organizara o assalto à fábrica de calçados, no qual depoimento Madeiros negava totalmente qualquer culpabilidade de Sacco e Vanzetti ― as sentenças de morte foram confirmadas.

Nesse tempo o nazismo ainda estava no limbo. Mussolini era um ditador na infância da ditadura, muito longe ainda vinha a guerra da Espanha e nem mesmo se falava nos expurgos sangrentos da Rússia estalinista. O mundo não se acostumara ainda com massacres em massa, ignorava que em breve se iriam assassinar não apenas dois homens inocentes, mas milhares e milhões de homens, mulheres e crianças inocentes ― e tudo em nome dos mesmos preconceitos, da mesma criminosa intolerância que naquele momento exigia a vida dos dois agitadores. De todos os recantos do globo partiam para o governador Fuller, que poderia comutar a pena, ― súplicas, petições, apelos. Mas o governador e sua gente fecharam os ouvidos à opinião livre do mundo ― e exatamente no dia marcado, na hora marcada, foram os dois inocentes sacrificados ao ódio de classe, à brutalidade todo-poderosa, à cegueira fanática de uma casta que santificava o seu predomínio através da tradição e do privilégio.

A imprensa dedicava páginas e páginas à tragédia ―  reportagens quase sádicas, com todas as minúcias da fúnebre cerimônia ― o retrato do juiz, o nome do carrasco, reproduções da cadeira elétrica com todos os seus detalhes técnicos, a carta de despedidas de um dos condenados ― a qual é hoje considerada uma obra-prima literária. E no mundo inteiro homens e mulheres liam os jornais, de olhos rasos d’água, ― e houve muita senhora religiosa, que a propaganda fascista ainda não ensinara a odiar e a pedir sangue ― que fez novena e rezou rosários por alma dos dois mártires. Aí como já disse acima, esse era um tempo de inocência e tolerância, entre nós. No dia fatal acompanhava-se em cada casa a marcha da tragédia ― e tal como nos sucedeu a mim e a minha mãe ― a muitos pareceu que viam também as luzes baixar, no minuto supremo, tal como deveria estar acontecendo na casa da morte.

Muitos escritores americanos deram o seu testemunho e lavraram o seu protesto contra o assassínio legal desses dois homens. Sinclair Lewis serviu-se do tema para argumento do seu romance Boston no qual a feroz intolerância da velha cidade nos é mostrada nas suas cores mais negras. Maxwell Anderson nele se inspirou para duas peças, Gods of Lightning e Winterset; a poetisa Edna St. Vincent Millay escreveu, oferecidos a Sacco e Vanzetti, os seus famosos “Two Sonnets in Memory”. E muito ensaio, muito estudo sério se fez sobre o assunto ― destacando-se entre eles o trabalho de Felix Frankfurter.

É esta, em linhas gerais, a história dos dois anarquistas, espécie de predecessores dos vários milhões de mártires massacrados mais tarde ― os quais, por sua vez, serão predecessores dos outros milhões que ainda estão por ser martirizados muito em breve, se Deus não puser à sua mão no meio.

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