Quem tem filho ou neto pequeno sabe como é: como os tiranos ainda são analfabetos, a gente é que tem que fazer a leitura das revistas de quadrinhos, com eles empoleirados no braço da poltrona, a acompanhar, com o dedo nas figuras, cada passagem, cada aventura ou desventura. Depois de alguns quartos de hora o pobre antepassado, acostumado até então à fácil leitura do livro propriamente dito, vai ficando zonzo com tanto desenho e tanto balão falante, e tenta pular um pouco, ou resumir pelo menos. Mas o danado do menino que, se ainda não lê corrido, conhece as letras todas e vai acompanhando as frases pela letra de começo (pelo menos é esse o sistema utilizado pelo meu analfabeto), dá logo notícia da fraude e reclama: “Ei, você pulou aqui, vovó”!

Ai, e como são monótonas e complicadas as aventuras de certos caubóis, de certas meninas, de certos espiões e super-homens!

Ontem, entretanto, tive uma surpresa alegre; apanhei na banca uma revista desconhecida, em procura do eterno algo novo ― e realmente encontrei o algo novo, na pessoa do nosso velho saci. É uma revistinha que usa o sobrenome do saci-pererê ― e tem como herói, protagonista ou papel-título o nosso velho e querido moleque de uma perna só.

Meu Deus, não sou muito de “nacionalismos” e xenofobias; mas confesso que é um alívio a gente sair da eterna americanice dos Roy, dos Chuck e das Millie, mais ou menos bem traduzidos. E da brutalidade chocante daquelas eternas brigas, ou os requintes de perversidade dos vilões infalivelmente orientais. O Pererê tem, pois, essa virtude inestimável: foge completamente à linha habitual das histórias em quadrinhos.

E, sendo os seus casos diferentes, são divertidos. Confesso que pela primeira vez eu própria, avó de netos, acompanhei de bom gosto um caso “quadrinizado”; pela primeira vez, em contato com essa desconcertante instituição que é o quadrinho, segui as aventuras do saci com o mesmo interesse que dedicaria a qualquer boa história de texto ininterrupto.

Pois uma virtude que se constata logo, ao contato com os calungas falantes de Ziraldo, é que ele é um dos pouquíssimos autores nacionais de literatura infantil (outro exemplo que posso citar é a grande pioneira, Lúcia Benedetti) que não trata os seus pequenos leitores como débeis mentais, a pretexto de que são crianças; não sofre daquela desagradável mania do diminutivo ―, que parece a certos “autores” a única maneira de provar que estão a fazer mesmo literatura infantil... Claro que vocês já notaram: é só pegar um suplemento infantil de jornal, um programa de televisão, uma peça de teatro para crianças; é tudo o mesmo: “Meus amiguinhos, está aqui a titia Lilinha, que vem contar uma historinha para vocês escutarenzinho bem direitinhos antes de irem para a sua caminha e fecharem os seus olhinhos... Era uma vez uma vaquinha, que era mãezinha de um bezerrinho e dava um leitinho bem branquinho...” e por aí vai. É ou não é? Os meninos ficam com o maior desprezo. Pelo menos os que eu conheço ficam.

Já nas histórias do Pererê, Ziraldo se dirige à meninada de maneira normal e sensata, como a seres inteligentes, falando com eles como exige o meu sobrinho que se lhe fale em horas de crise: de homem para homem.

Outra virtude que é bom anotar, nesta revista, é o hábil aproveitamento do nosso material folclórico ― o saci, com o seu pito e o seu rodamoinho (no Nordeste se diz redemunho) — que é o meio de transporte do perneta, e muito bem bolado plasticamente. A onça Galileu, o índio Tininim, o jabuti Moacir, o macaco, o compadre caçador, todos esses velhos conhecidos.

Destinando-se a esse público extremamente variado que é o público infantil, pois inclui leitores que vão da primeira infância à adolescência, o Pererê traz histórias de vários padrões, visando naturalmente a satisfazer cada uma a um determinado tipo de amador. Neste primeiro número a história de abertura é uma aventura interplanetária do saci, que vai à Marte (e, primeira grande bola do humorista, Marte é singularmente idêntico à nossa obra-prima de science fiction doméstica ― Brasília...). Depois vem um caso sentimental ― a serenata à boneca de piche em que o índio Tininim faz a sua brilhante aparição, junto com Moacir, o jabuti. Depois a viagem do saci à cidade grande, com um bom gozo nos lotações e programas de televisão; depois a pescaria, depois a caçada de onça.

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Este saci de Ziraldo me recordou muito um brasileiro que todos adoramos: Monteiro Lobato. Porque ele segue a boa linha de Lobato, do qual até hoje só tínhamos uma representante à altura ― a nossa já falada Lúcia Benedetti. Refiro-me àquele toque de ironia swiftiana, que sempre temperou os escritos infantis de Lobato. Ao Pererê de Ziraldo não falta o toque lobatiano, a sátira encoberta na história ingênua, a palavra de sabedoria e humor dentro do divertimento para meninos.

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Quanto ao êxito da revistinha posso dar um depoimento relativo ao meu supracitado neto: hoje, ao sair para a escola maternal onde “estuda”, tinha a sua maleta escolar toda coberta de recortes de anúncios coloridos, “igualzinho à mala do saci”, segundo declarou. Realmente, fui ver na capa do Pererê e lá estava o saci com a sua mala cheia de etiquetas de hotéis.

rachel-de-queiroz
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