Chegamos às festas do Senhor São João, que é o maior de todos os santos, desde janeiro a dezembro, maior do que São Pedro e São Paulo, maior do que os demais apóstolos, maior até do que São João Evangelista, que nas estampas da Ceia Larga descansa a cabeça no ombro de Nosso Senhor. Menor só é mesmo do que Nossa Senhora, porque se João era primo, ela era a mãe de Deus, e se ele o batizou, foi ela que o pôs no mundo feito de carne como nós.

Na aurora da nossa vida, todos os anos era aquela choradeira, porque ninguém era homem e não deixavam menina sair de São Joãozinho nas procissões, com uma tanga de pele e um cordeiro nos braços. Diziam que se podia sair de anjo ― anjo sim. Mas a gente protestava: “E anjo também não é homem? Tem anja”? Aí explicavam que anjo é andrógino, mas nós achávamos a palavra difícil e a explicação esquisita, e logo desconfiávamos que aquilo era mentira de gente grande querendo enganar criança. Além de anjo se podia sair de Santa Madalena, mas só quem tinha cabelo grande, batendo da cintura para baixo; ou de Santa Verônica, mas Verônica ninguém quer ser: sei até de uma menina que de noite se assombrou com uma careta muito feia, pintada pela zeladora da igreja no pano que ela carregava na mão. Anjo não é tão ruim, mas os moleques zombam muito: a gente marchando na fila da procissão, de mãos postas, a túnica comprida embaraçando o passo, o resplendor na cabeça, e os moleques dizendo muito sem-vergonhas: “Menino, traz água quente do fogo para depenar aquele anjo”... E o outro ajuda: “Qual, o anjo de azul”? ― “Não, depena mesmo o pedrês e faz uma canja”... Teve um menino meu conhecido que a mãe tinha enchido as asas dele com as penas de um galo branco por sinal muito bonito; ele ficou tão danado quando os moleques começaram a cantar cocoricó que arregaçou a saia de cetim e foi meter o braço em quem estava insultando; aliás apanhou e todo o mundo achou que foi uma vergonha e falta de respeito com a procissão.

De Senhor São Joãozinho, pode-se sair à vontade. Os meninos têm inveja e quando o cordeirinho tem fita azul no pescoço e está banhado com anil, as moças ficam de mãos juntas dizendo que parece uma pintura. Mas o menino precisa ter cabelo curto e cacheado, e ser bem gordinho, da pele limpa, porque anda a bem dizer nu, afora aquele couro atravessado no peito.

Quando começou a aparecer fita de Tarzan em Fortaleza, na primeira procissão em que saiu São Joãozinho, os garotos na rua se enganavam com a semelhança e batiam palmas como no cinema, pensando que agora até Tarzan acompanhava andor.

O povo de hoje em dia vai se cansando de fazer folguedo de São João como nos tempos de dantes. Também quem é que pode acender fogueira em apartamento ou mesmo em casa de vila? E se pudesse, com o preço em que está a lenha, sai mais caro brincar de fogueira do que passar São João em Quitandinha. Balão tem quem solte, aí pelos subúrbios ou aqui na ilha. Cada balão grande e bonito; outro dia fizeram um enorme e subiu tão alto que quase abalroou com um avião. A felicidade do aviador foi que viu no momento exato e raspou um fino com uma virada na direção. Mas esteve quase, quase.

Lá na minha terra, balão se usa pouco; é mais fogo de vistas, pistola, traque, estrelinha, e certas comidas do tempo, como canjica e pamonha. De bebida é aluá, que se prepara com muitos dias de antecedência para ficar meio azedo; mas se a gente for fazer aluá aqui no Rio até criticam e acham jeca. Mulher carioca quer guaraná e homem quer cerveja bem gelada. Nem tem milho verde para assar na beira do fogo; nem se faz sorte com bacia ou clara de ovo para ver qual é a moça que casa. Moças da era de 46 não acreditam mais nessas asneiras nem ficam em casa esperando casamento. Elas é que saem arranjando marido e felizes são eles quando se defendem. Não admiro se pegar uma moda de rapaz botar sorte de São João para ver se escapa ainda por aquele ano.

No mais, aqui como em toda parte há de ter o seu baile de caipira ou, como se diz no norte, “baile do chitão”. As moças vestidas de chita, os rapazes de zuarte e quando o calor aperta fica na sala um cheiro de tinta e de pano novo que até enjoa.

Outra coisa desagradável é esse costume de soltar bombas; e já começam com um mês de antecedência. No dia da chegada do Getúlio soltaram por cá tanta bomba que teve gente espalhando boato de que o homem desembarcara com um batalhão de paraquedistas, já tinham tomado a tiros toda a Esplanada do Castelo e estavam chamando os integralistas para ajudar na guerra. Alguns integralistas se animaram tanto que quase desenterraram no fundo do quintal as latas com a camisa verde e o punhal de sigma. Talvez não desenterrassem mesmo com medo de que alguém visse e pensasse que era mais um crime da mala. Além disso, embora ouvissem tiros, não sabiam ainda se a luta já estava ganha...

Este ano, Senhor São João, as vossas festas vão ser muito fracas. Tudo está caro, e além de caro não há. Em todo o caso, eu de mim, vou procurar um compadre e uma comadre e saltar fogueira com eles ― se arranjar alguma fogueira. É bom não perder o costume; passa um São João, passa outro e a gente vai ficando velha. Adeus, São João. Como diz aquela cantiga.

“Adeus, até para o ano,

se Deus quiser e nós também”.

rachel-de-queiroz
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