Uma coisa na cidade se perde: são as estrelas. Mesmo numa cidade mal iluminada como é hoje o Rio, o reflexo das luzes de terra não consente que se avistem direito as luzes do céu. Nem sequer a lua tem vez. Certas noites, a gente chega de repente à janela do apartamento e até sofre um choque: meu Deus, olha a lua. Ninguém nem mais se lembrava de que havia lua no mundo! Isso, porém, é tão raro — tanto chegar na janela quanto espiar o céu. Sim, estrela em cidade não tem serventia. Acho que a última vez em que olhei para o céu, no Rio, foi quando andaram por lá os aviões supersônicos; e assim mesmo olhei foi com medo, por causa do estrondo.

Já aqui no sertão os homens, a bem dizer, se preocupam mais com o céu do que com a terra. Pois não vê que é do céu que depende tudo cá embaixo, fartura ou fome, vida ou morte? E não falo metafisicamente, falo é objetivamente mesmo. Cearense nenhum é capaz de passar todo um dia sem estudar o céu, com angústia ou com alegria. Os torreões de nuvens. Os relâmpagos, os carregos de chuva, e toda a rosa dos ventos: vento sul que é bom, vento norte que é perigoso, vento nordeste que é ruim como o diabo.

De noite, então. A gente se senta no parapeito do alpendre, ou se deita na rede, e fica conversando devagarinho, — qualquer assunto manhoso e sem interesse, porque o interesse está mesmo é lá em cima. A papa-ceia este ano está vermelha, zangada, será bom sinal? Inverno bom ou inverno ruim? Já a estrela-d’alva, iluminando a madrugada que até parece que é toda feita de brilhante — quer dizer que Nosso Senhor anda por perto, cuidando dos seus filhos. No ano em que o cruzeiro muda mais para cima, pode esperar chuva. Muito bom também é zelação, mormente quando corre para o lado do mar. O mar fica a trinta léguas de distância, mas o povo aqui diz que escuta o estrondo da estrela cadente quando se afoga na água salgada.

Depois tem ainda a lua, as infindáveis variações da lua. Lua crescente de tarde cedo, muito bem desenhada e com a sombra bem preta, quer dizer fim de inverno. Lua com lagoa, lua sem lagoa — até menino pequeno entende de lagoa de lua. E além da lua tem as nuvens, cada uma com a sua explicação. Quando elas são compridas e altas como torres, quando são baixas e esfarrapadas, quando são miúdas e gordas, quando são brancas, cinzentas, azuladas, roxas, negras... Quando recebem o reflexo do sol por baixo ou por cima, quando filtram a luz como um pano esgarçado, quando enchumaçam o céu de algodão, de alto a baixo.

E os relâmpagos? Se relampeja do norte é uma coisa, do sul é outra. Tem relâmpago aprumado e relâmpago deitado, tem até relâmpago telegrafista, um comprido e dois curtos, dizendo que a chuva vem urgente. Já o trovão, pode ser de estalo e pode ser trovão de risada, como se tivesse alguém achando graça, lá em cima. E trovão de ronco, e trovão de tiro, mais grave e mais forte que o trovão de foguete, que de todos é o mais leviano.

*

Vocês aí no Rio que é que sabem disso tudo? Pois estas, agora, são as minhas preocupações. Me esqueci do governo e das candidaturas, do drama de Portugal, tenho até me descuidado do que anda fazendo o Marechal Lott. Quando estou aí, sempre acordo inquieta, pensando que ele pode muito bem ter aprontado alguma novidade durante a noite. Mas aqui, deixa pra lá. Faz um mês que não leio jornal nem revista, só velhos livros como Le maréchal d’Ancre, Os crimes da maçonaria, — essas coisas antigas. Esqueci aí na Glória o meu rádio de bateria, que era quem ia me dar notícias do mundo. Às vezes chega uma pessoa e conta um caso: que o governo do Estado vai diminuir o ordenado das professoras — volta tudo ao antigo salário de trinta mil réis por dia, para que professora quer mais de novecentos cruzeiros por mês? Ou então as últimas da famosa derrubada, até parece o tempo do Império, quando subiam os conservadores e não ficava um liberal no emprego. Andam falando que já foram demitidos mais de cinco mil adversários. Enfim, políticas.

Aqui, no entanto, nada disso tem muito eco, parece tudo tão longe como se a gente estivesse olhando do lado avesso de um binóculo. Longe, miúdo e embaçado. O problema agora, nas casas de pobre, é arranjar paiol para o feijão, que já é muito: e na força destas chuvas de maio, tem que ser apanhado ligeiro, senão ele nasce todo no roçado. Milho já é mais fácil, basta virar. Mas o feijão, ou se corre, ou se perde. Em casa não fica velho nem menino, — deixou de engatinhar já vai catar vagem de feijão.

Caça é que tem muito pouca. Marreca não se vê, nem o pato do mato que aqui se chama putrião. Andaram umas avoantes, mas sumiram, uma que outra sericoia, e uns jacus muito sem-vergonhas que aparecem de tardezinha, fazem uma estralada dos diabos, mas não deixam o caçador tomar chegada. O goiano fica tão furioso com essa falta de caça, que já chegou a dar tiro até mesmo em tetéu: só falta agora se rebaixar a atirar em anu... O azar é tanto, que na hora em que encontrou um gato do mato, estava sem arma...

Fartura mesmo é marimbondo de chapéu. Outro bom sinal de inverno. Parece que eles desconfiam do abrigo das árvores e se atacam para dentro das casas. Só aqui no meu alpendre já matei umas oito casas deles, com facho de fogo, e só se pode queimar de noite, depois que eles estão dormindo. Aquele bicho, acordado, pegando a gente no ferrão, dá febre, frio e dor de cabeça.

Na frente de casa, o pé de jucá está florindo, todo amarelinho. E com esta, adeus.

rachel-de-queiroz
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