Abro um pacote de correspondência atrasada, e na grande maioria dos que me escrevem encontro pessoas que me pedem a receita de “vencer”, ou me contam as suas esperanças de “ser alguém”. A fórmula é empregada por todos nestas mesmas palavras, e de Mato Grosso e do Amazonas, da quieta cidade mineira ou da pequena cidade grande de São Paulo, todos eles me dizem a mesma coisa: “querem ser alguém”. O que eles chamam “ser alguém” é ver o próprio nome em letra de forma assinando colunas de prosa e verso, é aparecer nos jornais, nas revistas, nas estações de rádio. E ante isso eu me encolho e não lhes digo nada, e eles muitas vezes se zangam e me traduzem o seu ressentimento em novas cartas. Ora valha-me Deus, caríssimos, como é que hei de responder? Já tenho respondido muito, aqui mesmo por esta coluna, mas não custa repetir, se vocês fazem questão. É que para mim, para nós, ser “alguém”, no sentido em que vocês pensam, é não ser coisa nenhuma. É um sacrifício, um fracasso, uma imolação. É ser apenas um nome impresso, uma cara escrachada, um jingle de rádio. Conformar-se o tal “alguém” à figura que artificialmente ele ajudou o público a criar em torno de si, encher o molde do figurino que lhe traçaram, realizar perante a plateia a personalidade que o público deseja, – e isso, naturalmente, às expensas da sua própria personalidade, dos seus próprios desejos e das suas próprias preferências e repugnâncias. Ser alguém é não ser ninguém, é ser um boneco, uma voz, uma assinatura. Se vocês não se convencem ou não acreditam, apresentemos alguns exemplos práticos. E para não ofender ninguém, comecemos os exemplos com o desta vossa criada, que é pau para toda obra, e já não se ofende com coisa alguma. Em geral as moças que escrevem dizem “que gostariam de estar no meu lugar, serem conhecidas, citadas” etc. “Queria ser alguém tal como você o é”, afirmam. Muito bem. Pois quem é que eu sou? Na minha própria opinião sou uma idiota e uma pobre de Cristo, mas isso não vem ao caso. Aos olhos delas, se falam sinceramente, sou uma senhora que escreve nas folhas, que tem público, retrato impresso, é lida por toda parte (o que não é nenhuma fúria, já que a revista e o jornal vão a toda parte). Mas já lembraram que esse nome que leem impresso e que vai a toda parte é apenas um nome, não é uma pessoa? Que não tem nada comigo, apenas me dá trabalho e incômodos, nada tem com a minha vida propriamente dita, com o que eu queria ser e que não fui, com o que eu sofro e com o que eu gosto? A entidade que vocês conhecem, o nome que vocês pensam que sou eu, é só aquela assinatura ao pé da crônica. Não é uma mulher, é uma contrafação. Não me pertence, antes me escraviza, me obriga muitas vezes a dizer o que não quero, a fingir o que não sou. Se eu por acaso quisesse mudar – escrevesse nesta página receitas de cozinha, por exemplo, coisa que adoro – todo mundo se danava, a começar pelo diretor que me paga para outra coisa. Era como se o cachorro ensinado do circo resolvesse de repente deixar de fazer papel ridículo e ladrasse contra a plateia, feito um cachorro normal. É verdade que posso lhes falar dos meus aborrecimentos, das minhas singelas alegrias – mas só dentro de determinadas condições, submetendo tudo à contrafação literária – escrevendo sempre, maculando a pureza e a autenticidade do desabafo com a preocupação de transformar aquilo em matéria impressa. Se conto apenas que tive uma hemoptise ou uma dor de fígado, talvez os enoje ou pelo menos enfade; preciso usar de astúcia e transformar a dor ou a náusea em qualquer coisa comovente, ou engraçada, ou curiosa, para ter o direito de lhes falar nela. E no entanto, o que tive foi uma dor à toa, igual à dor de todo mundo, mas que me incomoda e assusta, e da qual eu gostaria de falar, como todo doente gosta.

É esse o nosso privilégio – uma espécie de privilégio de ser escravo. Outro exemplo, este melhor. Todos nós adoramos Dulcina, considerando-a uma grande mulher e uma grande artista. Quantas não a invejamos, não lhe cobiçamos a glória, o imenso prestígio artístico. Pois que diriam vocês se no meio de um espetáculo a nossa grande Dulcina se chateasse, largasse da peça, tirasse a caracterização incômoda, e fosse falar de outra coisa? A menos que a coisa não fosse tomada como novo artifício gracioso da atriz, o público ficaria danado da vida, reclamaria aos gritos, e obrigaria a fugitiva a deixar de lado a expansão, a repor a cabeleira falsa, e a voltar a repetir docilmente as linhas alheias, prisioneira do público, do papel, prisioneira principalmente do seu cartaz, do seu famoso nome de Dulcina.

Lembram-se quando andou aqui Tyrone Power? O público ficou detestando-o, porque ele se revelou um sujeito seco, calado, pouco amigo de festas e exibições. Fosse ele um Sr. John Smith, americano vendedor de gasolina, essas qualidades lhe teriam dado reputação de homem sério e lhe granjeado estima no meio dos negócios e nas casas de família. Mas como galã de cinema, é ele um “alguém” – o alguém que as fãs construíram, obrigado a sorrir, a beijocar, – a continuar galã, quer de dia quer de noite, se não quer perder a popularidade e até mesmo o meio de vida.

Só no anonimato e no silêncio é que se pode ser realmente alguém. Na paz e na decência da vida particular o homem entregue aos seus pensamentos é dono do mundo inteiro e na verdade então ele é alguém. Tudo que tem a seu redor é seu, pode usar e abusar dos seus sonhos, das suas palavras – do presente e do futuro. Transformar-se à vontade, reza ou peca a seu gosto, não tem leitor nem ouvinte que faça dele uma determinada ideia e o obrigue a se conformar a essa ideia se quiser ter valor comercial e êxito. Aliás a palavra êxito apareceu aqui só agora, mas no entanto é ela a chave de tudo. Porque toda a nossa vida está condicionada a isso: ao êxito. Por amor dele nos padronizamos num tipo que no fundo detestamos, por culpa dele vivemos no terror da palavra errada, do gesto errado.

E, afinal de contas, feliz de mim que não sou praticamente ninguém nesse triste caminho de ser “alguém”. Pouco tendo subido, menor é o medo da queda. Pois quanto mais alto se está nos pináculos do favor público, mais forte se sente a ameaça da melancólica descida. É que além dos cimos não há nada – senão a vertente oposta...

rachel-de-queiroz
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